O cristão e o governo civil: um breve estudo do capítulo XXIV da Confissão Batista de Londres de 1689
RESUMO: O presente trabalho visa a uma discussão acerca da legitimidade do exercício de poder dos governos civis, do ponto de vista bíblico, considerando a repulsa pós-moderna a ideia de autoridade e submissão. Expõe brevemente um capítulo da Confissão de Fé de Londres de 1689, “Sobre o Magistrado Civil”, partindo do pressuposto que as confissões reformadas históricas, com seu ensino condensado e sistematizado, são úteis para a edificação da igreja e um bom ponto de partida para discutir as principais doutrinas cristãs.
PALAVRAS-CHAVE: Governo civil; Confissões reformadas; CFB1689.
Introdução
Vivemos numa época de crise de autoridade. Geralmente se costuma associar o próprio conceito de autoridade a algo negativo, usado para fins de dominação e opressão, como insistem as narrativas pós-modernas. Pensa-se em “poder” como algo utilizado desnecessariamente, só porque é vantajoso para quem o exerce. Outros defendem que a autoridade precisa ser exercida simplesmente porque outras instâncias, como a educação, falharam, e então apela-se a ela por fim. A relação de autoridade seria então um mal necessário.
É possível que essas percepções sejam fomentadas pelos maus exemplos daqueles que exercem autoridade, os quais, muitas vezes, aproveitando-se das prerrogativas do seu exercício, se envolvem com corrupção ou confundem essas prerrogativas com autoritarismo. Mas não apenas isso. A verdade é que para uma sociedade cuja cosmovisão reflete as características do pós-modernismo, que tem dificuldade com o absoluto e com o conceito de verdade, a ideia de autoridade sempre é vista como algo ruim. Por conta disso, até mesmo muitos pais educam seus filhos alheios a qualquer conceito de autoridade, acreditando que não podem dar ordens ou dizer “não”, pois isso iria tolher suas potencialidades. Como resultado, os pequenos crescem acreditando que todo aquele que exerce autoridade é um tirano que quer limitar sua liberdade. Nessa lista de tiranos, encontram-se professores, policiais, agentes de trânsito, líderes eclesiásticos, juízes etc.
Mas o que a Palavra de Deus nos ensina sobre isso? O exercício da autoridade de uns sobre outros é algo inerentemente ruim? Ou há legitimidade para a existência dessa esfera chamada Governo Civil? O capítulo XXIV da Confissão de Fé Batista de 1689 (CFB) nos ajuda a sintetizar o ensino bíblico sobre esse tema, que todo cristão deve atentar, apresentando-o em três parágrafos.
As autoridades foram ordenadas por Deus
Deus, o Senhor Supremo e Rei de todo o mundo, ordenou os magistrados civis para que estejam, abaixo dEle, sobre o povo, para a Sua própria glória e para o bem público; e para este fim, os armou com o poder da espada, para defesa e incentivo dos que fazem o bem, e para castigo dos malfeitores. (1Rm 13.1-4) (CFB, capítulo XXIV, § 1º).
Com base nesse parágrafo da confissão, podemos extrair as seguintes conclusões: 1) a origem do poder dos magistrados é o próprio Deus; 2) os magistrados estão abaixo de Deus e acima do povo; 3) o propósito da ordenação dos magistrados é duplo: glorificar a Deus e promover o bem público; e 4) para cumprirem o propósito, as autoridades foram dotadas do poder da espada. Mas essas conclusões coadunam com o ensino das Escrituras? Acreditamos que sim, pelas razões que passamos a apresentar.
A principal base bíblica para esse ensino se encontra no texto de Romanos 13:1-4. O apóstolo Paulo inicia o capítulo 13 explicando àqueles crentes a razão pela qual eles deviam obediência às autoridades. Interessante notar que a abordagem feita por ele logo no início inclui a expressão “toda alma”. Isso certamente demonstra que todos, sem exceção, crentes e descrentes, devem estar sujeitos às autoridades, embora a carta tenha sido endereçada aos crentes. O imperativo possui duas razões, e ambas envolvem a procedência divina: 1ª) porque não há autoridade que não proceda de Deus; 2ª) as autoridades que existem foram por ele instituídas.
O argumento segue apresentando o lado negativo, isto é, o que significa a não sujeição às autoridades, e a consequência disso: opor-se à autoridade significa resistir à ordenação do próprio Deus, e o resultado é trazer julgamento sobre si mesmo.
A procedência divina da autoridade aqui explicada por Paulo coaduna perfeitamente com o que o próprio Senhor Jesus disse a Pilatos, depois que este lhe advertiu: “Não me respondes? Não sabes que tenho autoridade para te soltar e autoridade para te crucificar?” (Jo 19.10) Ao passo que Jesus, que até aquele momento se mantinha calado, abre sua boca para responder: “Nenhuma autoridade terias sobre mim, se de cima não te fosse dada” (Jo 19.11). Naquele momento, Jesus não somente reconheceu que Pilatos detinha autoridade sobre ele, como também explicou a origem dessa autoridade, isto é, “de cima”.
É bastante provável que o pano de fundo utilizado por Paulo seja o contexto da aliança com Noé em Gênesis 6-9. Foi naquele contexto que Deus estabeleceu o governo humano como um instrumento de preservação da humanidade. Considerando que o próprio Deus afirmou que era ele quem iria requerer o sangue do ser humano que fosse derramado (Gn 9.5), e logo em seguida diz que o sangue do assassino seria derramado pelo próprio ser humano (Gn 9.6), conclui-se que a prerrogativa de requerer o sangue é de Deus, mas foi delegada aos seres humanos. Essa autoridade delegada, expressão da graça comum, certamente estava na mente do apóstolo ao declarar que não há autoridades que não venham de Deus, e que por ele foram instituídas.
Visto que a autoridade é ministro de Deus, vingador para castigar quem pratica o mal, o criminoso com razão deve temê-la. O apóstolo, entrementes, acrescenta uma nota: “porque não é sem motivo que ela traz a espada”. Esse texto indica com clareza que o governo civil é portador da espada e, portanto, também é o responsável por executar a justiça na terra.
Craig S. Keener, em seu Comentário Histórico-Cultural da Bíblia, ao se pronunciar sobre o texto de Romanos 13.3-5, explica que “a ‘espada’ refere-se ao método de execução padrão no período (a decapitação); em épocas anteriores, usava-se o machado. As espadas eram levadas à frente dos oficiais romanos para indicar sua autoridade sobre a vida e a morte” (2017, p. 538). Já João Calvino, no seu clássico comentário de Romanos, informa que “a segunda parte da função dos magistrados consiste no dever de reprimir pela força a insolente conduta dos perversos, que não se deixam governar espontaneamente pelas leis, bem como infligir-lhes castigo de acordo com suas ofensas, à luz do veredicto divino. O apóstolo declara explicitamente que os magistrados são armados com espada não como vã exibição, mas a fim de castigar os malfeitores” (2014, posição 10489, edição Kindle).
Portanto, os cristãos devem entender que as autoridades foram instituídas por Deus, verdadeiros delegados para cuidarem da administração da justiça pública.
2 A licitude do exercício da autoridade pelos cristãos
É lícito que os Cristãos aceitem e exerçam o ofício de magistrado, quando chamados a isso; e em sua administração, eles devem especialmente manter a justiça e a paz, segundo todas as leis de cada reino e comunidade, de modo que, para esse efeito, podem legalmente, agora sob o Novo Testamento, empreender guerra em ocasiões justas e necessárias. (2Sm 23.3; Sl 82.3-4; Lc 3.14) (CFB, capítulo XXIV, § 2º).
Certamente esta é uma dúvida que pode pairar sobre os cristãos sinceros, tendo em vista que aparentemente um magistrado poderia ordenar coisas que, fora do contexto correto, pareceriam contrárias ao que condiz com a postura de um discípulo de Jesus. Nesse sentido, como um magistrado, o cristão poderá determinar a restrição de direitos, como privar a liberdade, e, nos casos em que ela é permitida, aplicar a pena capital. Da semelhante forma, como um policial, ele poderá precisar entrar em confronto com criminosos e vir a tirar a vida de outrem. Desse modo, se não entendermos o papel das autoridades, poderemos pensar que o exercício dessas coisas é incompatível com a fé cristã.
O cerne da questão reside no fato de que as autoridades não fazem nada em nome próprio, mas no nome daquele que lhe conferiu a autoridade. Embora no plano sociológico os homens entendam que o poder exercido pelas autoridades públicas vem do povo, por conta de um suposto contrato social, sabemos muito bem, conforme visto no parágrafo anterior da confissão, que na verdade esse poder vem do único que detém todo o poder, o Deus criador de todas as coisas. Assim, quando homens exercem autoridade sobre outros, estão fazendo em nome de Deus, ainda que não reconheçam isso. Foi o Senhor quem lhes entregou a autoridade para prenderem, processarem e julgarem criminosos. Portanto, nada disso é feito por sua própria autoridade, mas pela autoridade daquele que conferiu o poder. Eis o fundamento pelo qual cristãos podem exercer papeis de autoridade na sociedade, o que de certa forma é até mais preferível, visto que são os únicos que entendem o caráter delegado do poder que receberam, e por isso deveriam ser mais responsáveis com esse poder.
Como dito, o poder conferido por Deus consiste também numa responsabilidade, a de manter a justiça e a paz. E o cristão consciente da fonte do poder, deve ser totalmente responsável perante ele. É, nesse sentido, um exercício de fé e piedade o cumprimento com diligência dessa responsabilidade diante do Senhor.
No último capítulo de suas famosas Institutas, ao tratar do Poder Civil, João Calvino também é bastante contundente nesse sentido:
A essa altura põe-se um problema muito difícil e complexo, a saber, se a Lei de Deus proíbe aos cristãos de matar. Porque se Deus o proíbe (Êx 20.13; Dt 5.17; Mt 5.21), e o profeta anuncia que a Igreja, que é o Monte Santo de Deus, não fará mal algum (Is 11.9; 65.25), como é possível que os magistrados derramem sangue sem cometer pecado? Contudo, se compreendermos que o magistrado, ao punir, nada faz em nome próprio, mas executa os juízos de Deus, então este escrúpulo não poderá nos confundir. É verdade que a Lei proíbe matar; no entanto, a fim de que os homicidas não fiquem impunes, Deus, sumo legislador, pôs a espada na mão de seus ministros para usá-la contra os homicidas. Portanto, não se pode considerar dano ou ofensa o fato de que os juízes vinguem, por mandato do Senhor, as aflições padecidas pelos bons. Prouvera que nos lembrássemos sempre de que isso não se faz por iniciativa temerária dos homens, mas por autoridade divina, a qual nos impede de desviar do bom caminho, a menos que se pretenda impedir a justiça divina de punir a perversidade. Mas, se não é lícito impor leis a Deus, por que caluniar os seus ministros? Não é em vão que trazem a espada, diz Paulo, pois são ministros de Deus e instrumentos de sua justiça para punir àqueles que fazem o mal (Rm 13.4). Entendam os príncipes e demais autoridades que não há nada mais agradável a Deus que a obediência, a piedade, a justiça e a integridade, e se empenhem na correção e punição dos maus. (2009, Tomo II, p. 884-885)
Além disso, no tocante à participação na guerra, os cristãos também devem compreender que existem guerras justas e injustas, sendo lícito participarem das primeiras. João Batista, ao responder aos soldados sobre o que deveriam fazer, disse-lhes três coisas: não tratar ninguém mal, não defraudar ninguém e contentar-se com o soldo (Lc 3.14). Em nenhum momento eles foram instados a abandonarem o seu chamado de soldado por que isso seria incompatível com uma vida que agrada a Deus. Disso se depreende que é possível ao cristão participar de conflitos armados, se a causa for justa.
3 O dever de obediência e submissão às autoridades
Sendo os magistrados civis instituídos por Deus para os fins supracitados; requer-se de nós a obediência, no Senhor, em todas as coisas lícitas ordenadas pelas autoridades, não apenas por causa da punição, mas como dever de consciência.4 Devemos suplicar e orar pelos reis e por todos os que estão investidos de autoridade, para que, sob seu governo, vivamos uma vida quieta e sossegada, com toda piedade e honestidade. (Rm 13.5-7; 1Pe 2.17; 1Tm 2.1-2) (CFB, capítulo XXIV, § 3º).
O terceiro parágrafo da confissão consiste numa conclusão com aplicações: o que fazer diante do ensino anterior. Convencidos da origem divina do poder exercido pelas autoridades públicas, a reação esperada é a obediência e submissão. Como falado anteriormente, toda alma deve estar sujeita, crentes e descrentes. E essa sujeição engloba, inclusive, o dever de pagar tributos (Rm 13.5-7).
Por mais que possa ser difícil para um cristão que não concorda com certas posturas e decisões do governo estabelecido, é preciso se submeter a ele. A submissão envolve o bom testemunho no cumprimento das leis, no exercício da cidadania e no respeito pelas figuras de autoridade. Precisamos lembrar que não respeitamos apenas a pessoa do governador ou do presidente, por exemplo, mas o cargo por ele ocupado. Evidentemente que a submissão não significa concordar com tudo, muito menos obedecer a leis que se coloquem contra nossa consciência diante de Deus, pois antes importa obedecer a Deus que aos homens (At 5.29).
Além disso, a Bíblia nos insta a orarmos por eles, pedindo que Deus os abençoe, lhes concedendo sabedoria para tomar as melhores decisões em prol de todos os governados, e para que tenhamos vida pacífica nesta terra quando for possível (1Tm 2.1-2). Devemos também agradecer pela sua existência, pois é uma expressão da graça comum. É em virtude do governo estabelecido que podemos contar com a força policial para dar um pouco de tranquilidade nas ruas, que o mínimo de saúde e assistência chegue aos menos favorecidos, e que recursos obtidos através dos tributos possam ser destinados a obras que melhoram a vida das pessoas como um todo. Infelizmente, isso está longe de ser perfeito, mas nem por isso deixa de ser uma expressão da graça de Deus. Talvez até estejamos, pelo contexto do estado social em que vivemos, mal acostumados a esperar muito mais do Estado do que ele realmente pode ou deveria proporcionar. Mas independentemente disso não podemos negar que Deus atua com sua graça através dessas coisas, sobre os bons e os maus, porque Ele é misericordioso.
As confissões de fé sintetizam o ensino sistemático das Escrituras (mas não em pé de igualdade ou infalíveis como esta) e consistem em ferramentas da igreja que foram aprovadas no teste do tempo, razões pelas quais são bastante proveitosas para os cristãos que as usam com sabedoria. Nesse sentido, vimos que a CFB, no seu capítulo referente ao poder civil, traz um ensino condensado em poucas palavras, mas profundamente bíblico.
Foi o próprio Senhor Deus que ordenou as autoridades, com vistas à preservação do homem, uma verdadeira expressão da sua graça comum. Ele conferiu essa autoridade para sua própria glória e para a promoção do bem público entre os homens. Para que essas autoridades conseguissem atingir esse fim, foram dotadas do poder da espada, a fim de que pudessem infligir castigos contra os maus e recompensar os bons.
Desse modo, os cristãos que possuem essa vocação também podem ser investidos nesses cargos de autoridade, visto que o seu exercício não é incompatível com a fé. Na verdade, agradam a Deus as autoridades que no seu mister funcional aplicam a justiça, muitas vezes restringindo direitos e liberdades, porque não o fazem em nome próprio, mas no nome de Deus. Nesse sentido, o cristão, mais consciente da origem divina do poder, deve ser o mais responsável e justo quando investido nessas funções.
Por fim, o dever de sujeição e obediência às autoridades deve ser algo natural para o cristão, visto que ele entende o fundamento desse dever. Assim, não somente pelo medo do castigo, mas pela consciência do que é correto a se fazer, o cristão é cidadão exemplar não somente da esfera espiritual, mas também desta esfera temporal. Isso inclui apresentar nossas orações a Deus em favor das autoridades, a fim de que tenhamos vida mais tranquila, e também agradecer pela graça do Senhor derramada sobre todos através das ações benéficas dos governos.
Diferente do homem pós-moderno, o cristão não entende autoridade como sinônimo de opressão. O cristão sabe que há um Rei justo que exercerá de forma plena seu poder sobre toda a criação redimida, e também sabe que terá alegria inesgotável em se submeter a esse poder por toda a eternidade.
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Referências bibliográficas
A Confissão de Fé Batista de 1969, um catecisco puritano compilado por C. H. Spurgeon. 9 ed. Tradução: William Teixeira e Camila Teixeira (Francisco Morato: O Estandarte de Cristo, 2016).
Calvino, João. A instituição da religião cristã. Tomo II, Livros III e IV. Tradução: Elaine C. Sartorelli e Omayr J. de Moraes Jr. (São Paulo: UNESP, 2009).
__________. Romanos. Tradução de Valter Graciano Martins (São José dos Campos: Fiel, 2014). (edição Kindle)
Keener, Craig S. Comentário histórico-cultural da Bíblia: Novo Testamento. Tradução: José Gabriel Said, Thomas Neufeld de Lima (acréscimos da segunda edição em inglês) (São Paulo: Vida Nova, 2017).
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