Os Pirata: Corpo (e alma?)
Os Pirata é uma coluna (relativamente) semanal do Blog do Reforma21 onde discutimos de forma curta e direta alguns temas relevantes (ou nem tão relevantes assim) da atualidade, cultura e vida cristã.
Você cuida do seu corpo? Você mesmo, cristão, sentado aí no sofá, todo esparramado, zela pelo corpo que o seu Senhor Deus, seu Criador, te deu, ou pensa que isso é vaidade e/ou mundanismo? Hoje Os Pirata discutem sobre como temos pensado a respeito do cuidado com nossos corpos e como isso pode significar mais do que correr maratonas ou levantar peso na academia.
Josaías Ribeiro Jr.
“Corpus facit, anima ignoscit” (Alexandrus Piris).
É verdade que a falta de cuidado com o corpo entre os cristãos pode ser relacionado a preguiça eworkaholismo, mas pode existir um motivo ainda mais antigo e sutil: uma mentalidade gnóstica que despreza aquilo que é físico em favor do que é imaterial. Como exposto pelo Emilio, podemos corretamente dedicar mais tempo à piedade que ao exercício físico, e isso é saudável e agradável a Deus. Porém, pode haver também a tendência entre cristãos (e não-cristãos!) de desprezar a realidade criada, palpável, material e sensual (no sentido de captável pelos sentidos) como algo inerentemente ruim ou desprezível.
Esse foi um dos grandes desafios da igreja no primeiro século: lidar com esse ensino que tem aparência de sã doutrina, mas que é tão cristão quanto o site catraca livre. As consequências de negar-se a bondade das coisas materiais eram claras: se o mundo físico é mau, o corpo humano é mau, e a encarnação e ressurreição do Filho de Deus são absurdos. Daí surgem inúmeras heresias, como o Docetismo (do grego “dokeo” = parecer) que afirmava que Jesus tinha apenas a aparência de homem, mas era um tipo de espírito. Ou o Cerintismo, ensinando que Jesus era humano, mas ao ser batizado, o “Cristo”, na forma de pomba, desceu sobre ele. Mais: alguns acreditavam que, uma vez que o corpo físico não tem valor, o homem poderia cometer pecados à vontade, pois Deus não se importava com o que acontece com o físico, apenas com a realidade espiritual. E esses são apenas alguns poucos exemplos!
Esses pensamentos, que podem parecer tão distantes, ainda encontram espaço hoje, dentro e fora da igreja e do mundo cristão e semi-cristão: pessoas que pensam que seremos almas penadas no futuro reino de Deus, outros que acreditam que Jesus perdeu seu corpo humano ao ascender aos céus; supostos discípulos de Cristo que creem na reencarnação (onde o corpo é apenas algum tipo de “casca” descartável para a valiosa alma) ou aqueles que ignoram pecados sexuais, pois o mais importante é o AMOR (mais, por favor). Há ainda aqueles que não desfrutam das coisas maravilhosas que Deus nos deu ou não entendem que elementos cotidianos como pão e vinho funcionam como meios de graça quando há disciplinas mais “incorpóreas”, por assim dizer, como oração, meditação e aquele emocionante louvor. E claro: os que não cuidam e cultivam o próprio corpo.
Em parte, isso apenas reflete a tendência de nosso mundo de desvalorizar o corpo quando lhe convém. Se serve para elevar quem sou, eu valorizo tanto resultado apolíneo do Crossfit quanto a “real beleza” dos comerciais Dove. Porém, nossa biologia nada tem a ver com o gênero do meu parceiro sexual ou com meu próprio gênero. Aquele monte de células multiplicando-se no útero pode até parecer-se com um corpo humano em determinado momento. Mas ele é realmente humano só por isso? É preciso que ele se autentique para realmente ser uma pessoa e, assim, ter direito à vida. Quando? Só deus sabe.
Por trás dessa desvalorização do corpo, encontra-se a rebeldia do ser humano contra uma das bênçãos e um dos limites que Deus colocou sobre nós. Não há nada mais contrário à autonomia humana que saber que não somos nós que definimos como nascemos, seremos e morremos. É preciso ignorar a autoridade externa divina (e aqui o corpo é sinal dela) e submeter-me à minha autoridade – meu querer, minhas regras, minhas emoções e minhas boas intenções – basicamente, o meu espírito. A preguiça e o workaholismo se encaixam nessa idolatria do ego. E se errei, não importa: como a frase do filósofo que abre nosso texto diz, “o que o corpo faz, a alma perdoa”.
Emilio Garofalo
“Pois o exercício físico para pouco é proveitoso, mas a piedade para tudo é proveitosa, porque tem a promessa da vida que agora é e da que há de ser.” 1 Timóteo 4.8
O ensino de Paulo é claro: comparativamente, o exercício físico não produz tantos frutos como o exercício na piedade. Afinal, um diz respeito aos próximos 30, 40, 50 anos, e o outro envolve frutos para os próximos 500 milhões de anos, ou mais. Já que o exercício físico é pouco proveitoso, seria algo em que devemos gastar tempo? Bem, sim! Com limites, mas sim. Mas calma, coloquemos mais nuance na discussão.
Claro que há alguns de nós que são amantes do exercício. Não todos. Eu gosto quando estou fazendo, mas tenho dificuldade em me animar a fazer. Para muitos, não há nada melhor debaixo do sol; pensam não haver nada tão satisfatório quanto aquela sensação de dor muscular depois do dia de membros inferiores na academia, gostam de superar limites e fazer o pulmão arder, e se revigoram com estar com o corpo todo suado. Outros não gostam. Mas não há pecado em gostar.
Como já tratado em outro texto, fomos feitos imagem de Deus em corpo e alma (ou espírito). O Filho de Deus ainda hoje tem um corpo feito de ossos, músculos e sangue, e o terá para todo o sempre. Ele tem tríceps, músculos core e panturrilha. Corporalidade é um aspecto inextinguível de sermos humanos, e isso é bom. Ou melhor, Deus disse que é muito bom. E sentirmos prazer nesse exercício – glorificarmos a Deus por meio da ação física de nossos corpos – é algo bom e agradável a Deus. E isso pode ocorrer se alongando até estalar, correndo atrás de uma bola com o vento no rosto, puxando ferro pra cima e pra baixo, trombando e sendo trombado debaixo de uma cesta, no vigor do relacionamento sexual, no ritmo de um caiaque ou pedalinho, ou meramente nos refestelando no fato de que temos corpos capazes de boiar na água… e isso é algo glorioso.
É claro, na queda muito se corrompe. Há terríveis limitações físicas e muitos vão chegando aos 40 e percebem que dificilmente passam impunes de uma partida de futebol no final de semana, com dores e enrijecimento corporal que levam dias para passar. Além disso, facilmente idolatramos qualquer coisa. Podemos transformar o bem estar do exercício físico num deus cruel que exige cada vez mais de nós e nos faz deixar de lado coisas mais urgentes na vida, como, por exemplo, o exercício na piedade. Comparativamente, é bem mais proveitoso, necessário e urgente você estar com o povo de Deus adorando e ouvindo a palavra pregada no domingo de manhã do que fazer aquela caminhada no parque. Além disso, podemos facilmente exagerar o valor e o lugar do exercício e de seus benefícios, tornando o sonho de voltar a caber no vestidinho de 5 anos atrás ou na camisa que está apertada o objetivo da vida que supera tudo o mais. Facilmente amamos a idolatria que vem dos que admiram nosso corpo sarado e esculpido (eu mesmo nunca passei por isso, mas sei que ocorre). Não é novidade que para muitos a malhação assume o espaço de Deus.
A boa notícia é que, como Paulo entendia muito bem, há nesse mundo atual uma urgência de nos gastarmos na obra missionária, por exemplo, que não mais existirá na Nova Terra. E continuaremos tendo corpos, e eles serão incorruptíveis, como os de Jesus. Há muito exercício que nos aguarda no futuro: jogos, trabalho, diversão, nos gastarmos em alegre uso do que Deus nos deu. E o melhor de tudo é que isso não será de forma alguma divorciado da piedade. Finalmente teremos de fato mens sana in corpore sano.
Filipe Schulz
John Owen foi um pastor e teólogo não-conformista, membro do parlamento britânico e vice-reitor Universidade Oxford. Seus livros, tratados e catecismos são amplamente conhecidos por todo o mundo cristão. Entretanto, o título de Owen que talvez não seja tão conhecido de muitos é o de “insone inveterado”. Em determinado momento de sua vida, Owen, em meio a revoltas políticas e afazeres eclesiásticos e acadêmicos, se permitia apenas 4 horas diárias de sono. Se essa foi sua época mais produtiva, quando mais velho, e constantemente acamado, Owen atribuiu a fragilidade de sua saúde à falta de descanso em sua juventude. É sobre esse aspecto do cuidado com o corpo que eu gostaria de falar hoje.
Logo no início da Bíblia, Deus já havia deixado claro como seria nossa rotina: seis dias de trabalho, um de descanso – ritmo e proporção divinimente ordenados. Assim como precisamos de oxigênio, água e comida, o descanso e o sono são partes fundamentais da natureza humana conforme criada por Deus, e não faltam estudos e estatísticas relacionando a falta de um mínimo de repouso às consequências que vão desde maior propensão a refriados até perda de massa cerebral. Sim, a queda trouxe o cansaço no trabalho e, consequentemente, a preguiça de trabalhar, mas também trouxe a rebeldia que nos faz querer trabalhar quando deveríamos estar descansando.
E, no fundo, todos nós sabemos disso, mas raramente agimos de forma coerente com nosso conhecimento, não é mesmo? Frequentemente tentamos justificar a falta de descanso com o bom e velho verniz “espiritual”: fui dormir tarde porque estava lendo, mas era um livro de teologia!; estava preparando a aula da EBD das crianças na madrugada de Sábado para Domingo; o único tempo que tenho para minha esposa é depois de meia noite. Pensamos que seríamos muito mais produtivos e úteis ao reino de Deus se pudéssemos ler, escrever e trabalhar nas (mais ou menos) oito horas que gastamos deitados e de olhos fechados.
Já se vão algumas décadas de vida cristã e eu ainda me surpreendo com a amplitude dos temas tratados nos Salmos; se você, como eu e John Owen, teima em dormir e descansar menos do que você sabe que deveria, no Saltério encontramos palavras preciosas que precisamos aplicar aos nossos corações inquietos. Veja o contraste que o Salmo 121 – É certo que não dormita, nem dorme o guarda de Israel; O SENHOR é quem te guarda – e o Salmo 127 – Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes; aos seus amados ele o dá enquanto dormem – nos mostram, a respeito de quem somos e de quem Deus é. Nós dormimos, ele não; nós precisamos, ele é provedor; deitamos como presas indefesas, é ele quem nos guarda. Quer mais? Salmo 3: Deito-me e pego no sono; acordo, porque o SENHOR me sustenta. Salmo 4: Em paz me deito e logo pego no sono, porque, SENHOR, só tu me fazes repousar seguro.
Dormir e repousar é um lembrete diário de que não somos Deus. É ele quem nos guarda e nos provê tudo que precisamos, mesmo quando dormimos. Sua palavra nos lembra que é inútil o esforço rebelde e pecaminoso de tentarmos trocar de lugar com ele ao acordarmos cedo e dormirmos tarde na tentativa de sustentarmos a nós mesmos quando deveríamos estar descansando. Em resumo: você não é Deus, e nem deveria tentar ser. Descanse nessa verdade e durma com esse barulho.
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