Os Pirata: Trilogia Cornetto
Os Pirata é uma coluna semanal do Blog do Reforma21 onde discutimos de forma curta e direta alguns temas relevantes (ou nem tão relevantes assim) da atualidade, cultura e vida cristã.
– Como Bertrand Russell já disse, “A única coisa que irá salvar a humanidade é a cooperação”. Acho que todos devíamos pensar na relevância disso agora.
– Você leu isso em uma bolacha de chopp?
– Sim, de uma Guinness Extra Cold.
– Nem vou falar nada.
– Obrigado.
A Trilogia de Sangue e Sorvete, conhecida também como “Trilogia dos Três Sabores de Cornetto”, é uma série de filmes criados por Simon Pegg e Edgar Wright, estrelando Pegg e Nick Frost como os protagonistas. Os filmes da trilogia são Shaun of the Dead, o apocalipse zumbi mais romântico de todos os tempos, Hot Fuzz, uma comédia e ação de dois típicos policiais de personalidades opostas eThe World’s End, um reencontro de velhos amigos tentando cumprir uma antiga missão inacabada que envolve lutas de bar e alienígenas robôs infiltrados. Com descrições tão esdrúxulas, obviamente a Trilogia Cornetto rapidamente se tornou uma das preferidas dOs Pirata, e hoje explicamos o porquê:
Filipe Schulz – Shaun of the Dead
“Maridos, vós, igualmente, vivei a vida comum do lar, com discernimento; e, tendo consideração para com a vossa mulher como parte mais frágil, tratai-a com dignidade, porque sois, juntamente, herdeiros da mesma graça de vida” (1 Pedro 3.7)
Não deixe que as aparências te enganem: Shaun of the Dead não é mais um filme de zumbis. Eu diria que esse é um dos filmes mais engraçados e românticos dos últimos anos e que, por acaso, tem alguns zumbis na trama. Claro, os elementos clássicos de filmes de zumbi estão lá, mas eles servem apenas como base para o desenvolvimento da verdadeira trama. Se você não se convenceu ainda, fica meu testemunho pessoal: nunca gostei de filmes de zumbis, não assisto The Walking Dead, mas Shaun é um dos filmes que eu mais gosto.
Se você é um leitor atento, talvez tenha reparado que eu cometi um engano terrível no parágrafo anterior e, sem querer, disse que esse filme de zumbis e de comédia é um dos mais românticos dos últimos anos. Minha missão no restante desse texto é te convencer que poucos filmes modernos, pelos menos no gênero das “comédias românticas”, nos mostram um retrato tão real e sólido do ideal divino de relacionamentos que as Sagradas Escrituras nos revelam (em passagens como 1 Pedro 3.7, por exemplo) quanto o que vemos nesse filme, mesmo que entre pauladas, tiros e seres humanos sendo despedaçados por hordas de outros seres humanos em decomposição.
Shaun começa com Liz, a namorada de Shaun de já alguns anos, terminando o relacionamento entre eles. Liz está cansada da apatia de Shaun para com tudo na vida, incluindo ela. Tudo que ele quer é gastar tempo com Liz e seu melhor amigo Ed no pub local. Liz quer mais que isso; Liz quer aventura, romance e emoção. Quando o atrapalhado Shaun estraga a última tentativa desesperada de provar seu amor, Liz se enche, e o proverbial chute no traseiro é dado. Shaun está livre para passar o resto dos seus dias patéticos com Ed no The Winchester.
Entretanto, quando o apocalipse zumbi é deflagrado, o primeiro pensamento de Shaun é encontrar Liz e protegê-la. Ele o faz de maneira heróica e romântica? Certamente que não – afinal, o filme também é de comédia, e algumas decisões desastradas e lutas cômicas se desenrolam de forma tal que, em certo ponto, você já nem acredita mais em final feliz (o que me lembra: em caso de apocalipse zumbi, arremessar discos de vinil é uma forma pouquíssimo eficaz de se defender). Mas, apesar da falta de jeito, Shaun arrisca sua vida diversas vezes pelo que ele entende que é o certo a se fazer, com o propósito de proteger a mulher que ele ama.
No fim das contas (e sem estragar demais o filme), Shaun não passa por uma jornada de aprendizado e amadurecimento que o torna um homem melhor – ele termina o filme basicamente como começou. Os zumbis aparecem e desaparecem sem muita explicação, e a vida segue (quase) que a mesma de antes. A diferença é que Liz agora vê seu (novamente) namorado como ele realmente é: não um adulto-adolescente apático e desligado, mas um homem que a ama e que faria qualquer coisa por ela, e que, em geral, gostaria de levar uma vida simples e sem muitos sustos. Romântico como “Orgulho e Preconceito” ou “Diário de uma paixão”? Não, mas muito mais parecido com a “vida comum do lar” que a Bíblia nos diz ser a vontade do nosso Criador para nossos relacionamentos.
Josaías Ribeiro Jr. – Hot Fuzz
Nicholas Angle é um policial londrino enviado a uma pequena cidade do sul da Inglaterra por causar diversos problemas na capital da Ilha. O protagonista de Hot Fuzz é inconveniente não por ser um oficial corrupto ou inepto, mas por ser competente demais. Suas façanhas chamam tanta atenção, e ele é tão acima da média, que os outros polícias querem vê-lo longe da cidade e, assim, ele vai parar na pacata Sandford, a multi-campeã do concurso “vila do ano”, onde nada acontece. Ou assim parece.
Angel é um policial tão bom porque ele cuidadosamente segue à risca a lei e as orientações da polícia britânica. Por exemplo, logo ao chegar em Sandford, ele prende um de seus colegas por querer dirigir embriagado e acaba com a tolerada farra de venda de bebida a menores. Contudo, ele é rapidamente impedido de fazer seu trabalho por seu capitão e pelos outros policiais, acostumados a um serviço acomodado e indulgente. O departamento de polícia é tão tosco que ignora uma clara série de assassinatos acontecendo na cidade.
Angel, com a ajuda de seu parceiro (aquele que foi preso por estar bêbado), investiga os crimes até descobrir uma sinistra conspiração envolvendo todos os grandes nomes da cidade. Qual é a motivação dos criminosos? Sadismo? Vingança? Um senso distorcido de justiça? Eles explicam: “o bem maior” (the greater good) os motivou. Porque eles estavam buscando o melhor para a vila (i.e., vencer o concurso “vila do ano”), alguns moradores deveriam desaparecer: os ciganos, os pichadores juvenis, o ator ruim, o dono da casa feia, a mulher com a risada irritante, e por aí vai. Se o bem maior (the greater good) for alcançado, então vale a pena fazer o necessário para esse fim. Um personagem justifica-se dizendo que “costumava seguir a imutável palavra da Lei”, mas hoje prefere seguir essa nova regra.
O filme fala sobre temas como amizade e o poder do cinema, mas o que me chama mais atenção é a batalha entre duas maneiras de enxergar a ética e a moral. Angel é aquele que segue fielmente instruções que ele considera justas e boas, enquanto seus oponentes adotam uma perspectiva pragmática, ou seja, o fim (the greater good) torna um ato virtuoso. O policial sabe que as regras devem ser seguidas em qualquer circunstância, enquanto os bandidos creem que o bem maior (the greater good) gera a ética da situação. Angel recebe suas regras “do alto”, por assim dizer, mas os inimigos criam sua própria justiça e atos morais. Um segue a imutável lei, os outros, a sua idolatria de ter o almejado prêmio.
Não é preciso desenvolver muito para perceber como isso reflete tanto como agimos quanto nossa sociedade. Também tendemos a subverter a imutável Lei para alcançar nossos sonhos ou o bem da sociedade (the greater good). Do mesmo jeito, nosso mundo cria a ética conforme ela alcança o que considera o bem maior (the greater good). Pensamentos como “Aborto é uma questão de saúde”, “ele rouba, mas promove justiça social”, “eu errei tentando acertar”, “o amor vence”, “eles estão apenas tentando ser felizes”, “faça o que te deixa feliz” demonstram essa visão pragmática e destituída de prumo. Ignoramos a imutável Lei, e matamos e mentimos para ter o que queremos.
E, no fim, o prêmio é tão ridículo e fugaz quanto ser a melhor vila do ano do sul da Inglaterra.
Emilio Garofalo – The World’s End
– Eu não bebo nada há 16 anos, Gary.
– Você deve estar com sede então!
O que um grupo de amigos à toa é capaz de atingir? Dentre diversos elementos divertidos para debate a partir desse filme, como, por exemplo a ordem de ataque aos pubs, há duas coisas com que quero ilustrar a vida da igreja. Lidemos brevemente com dois aspectos eclesiásticos desse delirante filme:
1 – A eterna adolescência. No filme, temos um personagem que ficou para trás. Enquanto todos cresceram e apareceram, Gary King (Simon Pegg) segue sendo o molecão, o “homenino”. E ele é, intencionalmente, irritante. Confesso sentir uma certa raiva de seu jeito. Não é preciso discorrer muito sobre o assunto, mas por certo há muitos que percebem a crise de crescimento em nossos tempos. Casamentos tardios, adolescência perpétua, etc. Mas pouco se fala em um dos produto malditos desse problema: a igreja tem sofrido tremendamente por causa disso.
Se, no passado, homens no final dos seus 20 e início dos 30 já tinham passado pelas grandes transições da vida (emprego, casamento, lar), hoje a maioria sequer saiu de casa. Esses homens poderiam, em tempos passados, ser chamados para assumir posições de liderança. Hoje em dia, levam 10 anos a mais do que seria necessário para formarmos um bom presbítero ou diácono, e a igreja sofre com isso; sofre com maridos incapazes de liderar suas famílias no caminho do Senhor. Além disso, ainda há aquela nostalgia um tanto tola de “como era boa a nossa juventude”, também muito comum em alguns adultos. Assim, a igreja fica estagnada, ao invés de dinamicamente crescer na renovação de sua liderança e, em cada lar, amadurecer diante de Deus.
2 – Amigos atingindo grandes coisas. Na história, eles tem de cumprir a milha dourada: beber uma pint de cerveja em cada pub da cidade até o final da noite, mas as coisas se tornam bem estranhas a cada etapa “vencida”. É bem curioso notar algo similar à clássica “trajetória do herói”, ou mesmo uma possível alusão aos doze trabalhos de Hércules. E a obra é simples: 12 pubs, um com nome mais biruta que o outro. Pubs e muita cerveja. O que pode dar errado? Ora, seres humanos e seres inumanos! Logo a história assume um tom sobrenatural e eles começam a descobrir que a velha cidade deles está tomada por robôs que se passam por seres humanos. Enfim. As coisas ficam bem violentas, e cabe a nossos heróis improváveis salvar o dia.
A ideia de uma sociedade de amigos atingindo grandes feitos se vê em inúmeras histórias, incontáveis lendas. Exemplos fáceis de lembrar são a Sociedade do Anel e a Aliança Rebelde. Um bando de gente, alguns com algo a oferecer, outros nem tanto. Mas, juntos, recebem uma tarefa maior do que são capazes de realizar. Talvez essa ideia esteja entranhada na mente humana por causa da grande história de redenção. Nosso rei e herói Jesus Cristo redime o mundo e reúne para ajudá-lo nessa tarefa um bando não muito melhor do que a turma do Gary. Gente pecadora, caída, rebelde e com muita bagagem. Mas gente feita em nova criatura, capaz de atingir grandes coisas por meio daquele que os chama e capacita.
O mundo é bem estranho (embora eu não creia na existência de aliens robôs como os do filme). Mas coisas estranhas acontecem. A tranquilidade é a de que, ainda que demoremos a crescer, Ele nos usará para avançar seu reino. No final das contas, melhor comer um Cornetto enquanto nos preparamos para o fim do mundo.
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