Tatuar ou não tatuar? Eis a questão! Uma análise exegética e bíblico-teológica de Levítico 19.28
Tatuar ou não tatuar? Eis a questão!
Uma análise exegética e bíblico-teológica de Levítico 19.28
As tatuagens estão em alta, ao menos nos seriados. A série Blindspot narra a história de uma mulher tatuada e misteriosa que foi encontrada desacordada na Times Square em Nova York, após perder sua memória e esquecer da própria identidade. O FBI descobre que cada tatuagem contém uma pista para um crime que está prestes a acontecer. Desvendar cada marca é imprescindível para proteger os Estados Unidos e descobrir quem foi o responsável pelas tatuagens no corpo da mulher.
Além do mundo cinematográfico, a tatuagem também parece ser um tema bastante debatido e polêmico entre cristãos. Uma página do Facebook traz a seguinte postagem:
É pecado fazer tatuagens e usar piercing?
Levítico 19.28 diz que sim: “Não façam cortes em seus corpos por causa dos mortos, nem tatuagem em si mesmos. Eu sou o Senhor.” NVI
Existem cristãos que tem tattoos? Existem, porém geralmente elas foram feitas antes de sua conversão e mesmo assim, Deus teve um propósito pra isso! Se você faz tanta questão de ter uma, pergunte pra Deus se é da vontade dEle.[1]
Esse tipo de abordagem pode gerar confusão em nossa mente. Em primeiro lugar, o autor ou autora do blog não nos apresenta o contexto de Levítico 19.28. O que Deus queria ensinar a seu povo com essa proibição? De que forma o cristão atual deve se relacionar com a Lei de Moisés (incluindo esse texto de Levítico)? Ela continua em vigor?
Outro elemento da postagem que levanta dúvidas ocorre quando o autor afirma ser pecado fazer tatuagens fundamentando-se em um texto da Bíblia, mas, ao final do parágrafo, diz: “Se você faz tanta questão de ter uma, pergunte pra Deus se é da vontade dEle”. Se fazer tatuagem constitui um pecado, por que eu preciso perguntar a Deus se isso é da vontade dele? Existe pecado “segundo a vontade de Deus”?
Esse texto de Levítico merece nossa atenção especial. O que essa passagem realmente queria ensinar no contexto em que o antigo Israel vivia? Era uma proibição cujo foco estava na marca do corpo em si ou havia uma motivação sociorreligiosa por trás? Quebraríamos a vontade de Deus ao fazer tatuagens em nosso corpo? A Lei de Moisés ainda se aplica ao cristão hoje? Em caso positivo, como essa aplicação deve ser feita?
O contexto literário de Levítico 19
O livro de Levítico está situado no mesmo cenário histórico de Êxodo — o povo de Deus reunido junto ao monte Sinai para receber as instruções do Senhor por meio de Moisés (Lv 7.37-38; 26.46; 27.34).[2] As orientações de Êxodo e Levítico levariam Israel a viver como uma testemunha vibrante da redenção de Deus às nações: “Vocês viram o que fiz aos egípcios. Sabem como carreguei vocês sobre asas de águias e os trouxe para mim. Agora, se me obedecerem e cumprirem minha aliança, serão […] meu reino de sacerdotes, minha nação santa” (Êx 19.4-6, ênfase do autor).
Um dos objetivos de Levítico era ajudar os israelitas a entenderem o que significava ser povo do Senhor, bem como transformar sua maneira de enxergar o mundo depois de viverem por muitos séculos na dura escravidão egípcia.[3] Essa transformação envolvia uma consciência da importância de ser uma nação santa ao Senhor.
A santidade de Deus
A ênfase na santidade de Israel por pertencer ao Senhor é repetida diversas vezes em Levítico (11.45; 19.2; 20.26). A comunhão desejada entre Deus e seu povo dependia da assimilação do conceito de santidade transmitido pelo próprio Deus aos israelitas no Sinai.[4] Era o Senhor quem definiria o sentido de ser santo, não as culturas ao redor nem mesmo ideias pessoais que poderiam surgir na mente de um hebreu. Levítico 19 traz uma série de mandamentos cuja base está no versículo 2: “Sejam santos, pois eu, o Senhor, seu Deus, sou santo”. A santidade de Deus serve de fundamento para as ordens desse capítulo.[5]
As expressões “Eu sou Senhor” ou “Eu sou o Senhor, seu Deus” se repetem e funcionam como marcadores das seções de Levítico 19.[6] As leis desse capítulo têm como objetivo expressar a santidade ou evitar o seu oposto, isto é, impureza e profanação. Com base no chamado à santidade (v. 2), Levítico 19 apresenta mandamentos pelos quais Israel manifestaria em sua própria vida a santidade do Deus que os salvou para a comunhão consigo. Isso afetava as relações familiares (v. 3,29), a maneira que realizavam seu trabalho agrícola ou tratavam seus animais (v. 9-10,19), a forma que participavam da vida religiosa no tabernáculo (v. 5-8,21-22), a administração de seu comércio e sua vida econômica (v. 35-36) e muitas outras áreas de seu dia a dia. Não havia separação entre sagrado e secular, todo tempo e todo lugar estavam diante do Senhor e deveriam ser vividos em consagração a ele.
As proibições dos versículos 26-28 estão associadas a ritos praticados pelos vizinhos de Israel, dos quais a nação deveria se abster para manter sua identidade singular como povo de Deus. Uma das características da santidade era a separação de Israel[7] como uma nação que deveria servir exclusivamente o Senhor, não outros deuses. Isso implicava evitar práticas e cerimônias entre os povos ao seu redor que estavam associadas à adoração a falsas divindades: “Não adorem o Senhor, seu Deus, da forma como outras nações adoram os deuses delas, pois realizam para eles todo tipo de atos detestáveis que o Senhor odeia. Chegam até a queimar seus filhos e filhas como sacrifícios a seus deuses” (Dt 12.31). Deus precisava manter Israel separado das práticas impuras das outras nações, a fim de preservar a integridade do povo escolhido. Em um mundo contaminado pelo pecado, a separação de Israel era necessária para mantê-la como uma testemunha viva da redenção e transformação que só Deus poderia trazer ao mundo.
Outra característica da santidade era a integridade. Em Levítico, enfatiza-se muitas vezes a perfeição física exigida do que era apresentado no santuário e das pessoas que dele se aproximavam. Os animais para o sacrifício não poderiam ter defeitos (Lv 1.3; 22.21,22), as mulheres precisavam ser purificadas depois do parto (Lv 12.1-4), os leprosos deveriam ser afastados do acampamento e, caso fossem curados, tinham de passar por um ritual de purificação antes de se aproximarem do Tabernáculo (Lv 13.15-17,45-46).[8]
Essa ideia de santidade como completude ou integridade pode ser vista nas exigências aos sacerdotes que atuariam no Lugar Santo do Tabernáculo e se aproximariam de Deus. Os descendentes de Arão que tivessem algum defeito e, portanto, fossem fisicamente incompletos jamais poderiam ocupar a função de sacerdote:[9]
Dê as seguintes instruções a Arão. Nas gerações futuras, nenhum de seus descendentes portador de algum defeito físico estará qualificado para trazer ofertas de alimento ao seu Deus. Nenhum homem que tenha algum defeito estará qualificado, seja ele cego, aleijado, mutilado ou deformado, ou tenha o pé ou braço quebrado, ou seja corcunda, ou anão, ou tenha um olho defeituoso, ou feridas na pele ou sarna, ou testículos defeituosos. Nenhum descendente de Arão que tenha algum defeito se aproximará do altar para apresentar ofertas especiais para o Senhor. Uma vez que tem defeito, não poderá se aproximar do altar para trazer ofertas de alimento ao seu Deus.
Levítico 21.17-21 (grifo do autor)
Por fim, santidade também tinha que ver com vida.[10] Quando o Senhor fez uma aliança com Israel, Deus colocou diante da nação uma escolha entre obediência e desobediência, entre vida e morte. Obediência a Deus implicava vida, fertilidade e prosperidade, desobediência implicava perda da fertilidade, derrota militar, fome e morte.
“Agora ouçam! Hoje lhes dou a escolha entre a vida e a morte, entre a prosperidade e a calamidade. Pois hoje ordeno que amem o Senhor, seu Deus, e guardem seus mandamentos, decretos e estatutos, andando em seus caminhos. Se o fizerem, viverão e se multiplicarão, e o Senhor, seu Deus, abençoará vocês e a terra em que estão prestes a entrar para tomar posse dela. […] Pois ele [o Senhor] é a sua vida” (Dt 30.15-16,20).
Qualquer pessoa que tocasse em um morto tornava-se impuro durante um tempo e não poderia entrar no santuário para a celebração do culto ao Senhor (Nm 5.2-4; 9.6-14). Além disso, um sumo sacerdote, que entrava no local mais santo do tabernáculo uma vez por ano, jamais poderia tocar em morto algum (Lv 21.10-12). A morte representava o oposto da vida e da santidade, tornando impuro aquele que tivesse contato com ela.
O cuidado com o próximo em Levítico 19
Há outros elementos retóricos neste capítulo que costuram sua unidade. O mandamento “ame o seu próximo como a si mesmo” (v. 18) é ecoado na ordem: “ame o estrangeiro residente como a si mesmo” (v. 34, TA). Os filhos devem reverenciar seus pais e “observar meus sábados” (v. 3); por sua vez, os pais não devem prostituir suas filhas e precisam “observar meus sábados e reverenciar meu santuário” (v. 29-30). O temor de Deus é motivo para tratar os fracos de forma justa (v. 14) e para honrar o idoso (v. 32). A santidade não está desvinculada do amor. Ao contrário, o Deus que nos chama a sermos santos, assim como Ele é santo (v. 2), exige que amemos o próximo como a nós mesmos, expressando de forma prática a santidade dele na vida de seu povo (v. 18).
O capítulo enfatiza a relação viva entre a responsabilidade para com o próximo e a piedade religiosa, as duas dimensões da vida que nunca foram feitas para serem separadas. Assim, o contexto de Levítico 19.28 consiste em leis que detalham como o povo devia ser “santo” (qāḏôš), separado para o Senhor. A santidade afeta não apenas o relacionamento vertical com Deus, mas também os relacionamentos horizontais com o próximo no falar a verdade (v. 11-12), em não caluniar (v. 16), na prática da justiça nas relações sociais (v. 15,35-36) e no cuidado com os desfavorecidos (v. 13-14,33-34).
Uma vez que Israel passou a se ver como uma nação real, essa consciência trouxe consigo a noção de que todo israelita, e não apenas o rei, era agora responsável pelos elementos mais marginalizados da sociedade israelita. Embora possa ser tentador rotular a concepção de Israel de si mesmo como um povo sacerdotal distinto de outras nações como uma noção reacionária e elitista, deve-se reconhecer o fato de que essa mesma característica pode ter dado origem à visão única da Bíblia de que os israelitas de todos os estratos sociais tinham a responsabilidade de criar uma sociedade justa na qual os mais marginalizados não fossem negligenciados nem abusados.[11]
O contexto sociorreligioso do antigo Oriente Próximo
O texto que vamos examinar está, de alguma forma, relacionado às características da santidade mencionadas antes: separação de Israel da forma que seus vizinhos adoravam seus deuses; manutenção da integridade ou perfeição física; separação entre morte e vida, em que a segunda é uma representação ou manifestação da santidade.
A primeira parte diz: “Quando lamentarem a morte de alguém, não façam cortes no corpo” (19.28a). Há uma proibição para não aplicar/fazer “cortes no corpo”. O substantivo usado para falar dos “cortes” no corpo indicava “lacerações ou cortes” em uma prática ritual fúnebre: “Quando lamentarem a morte de alguém” (Lv 19.28). Provavelmente, “fazer cortes” era parte de uma cerimônia associada à morte de uma pessoa em que outras ações estavam envolvidas, como cortar partes dos cabelos ou barbas (v. 27).[12] Os mandamentos para não “fazer cortes” no corpo tanto em Lv 21.5 quanto em 19.28 estão associados ao falecimento de alguém (cf. 21.1-4 e 19.28a), e ambos também estão no contexto de ordenanças que falam sobre cortar ou raspar o cabelo e cortar a barba (21.5 e 19.27).
A prática de cortes rituais como expressão de luto ocorria em todo o mundo do antigo Oriente Próximo. A Maldição de Agade, um poema escrito entre 2200 e 2000 a.C. que fala sobre as instabilidades de um império mesopotâmio, apresenta a lamentação das pessoas depois da destruição de sua cidade pelo deus Enlil.[13]
O principal cantor de lamentações que sobreviveu àqueles anos,
Por sete dias e sete noites
Colocou no lugar sete… tambores, como se eles estivessem na base do céu,
e Tocou… tambores para ele [Enlil] entre eles…
As mulheres idosas não contiveram [o choro]: ‘Ai de ti, minha cidade!’.
Os homens idosos não contiveram [o choro]: “Ai de ti, meu povo!” […]
Suas jovens não se contiveram de arrancar seus cabelos,
Seus jovens não contiveram suas facas afiadas. […]
Por causa disso, Enlil entrou em seu santo dormitório, e deitou-se jejuando.[14]
A menção aos jovens que “não contiveram suas facas afiadas” provavelmente indica a prática de cortes, cujo objetivo era aplacar o deus ofendido, Enlil, ou atrair a atenção de um deus que pudesse interceder em favor dos lamentadores.[15]
Nos vários textos descobertos em Ugarite, uma cidade que ficava na região onde hoje está a Síria, há a descrição de El, o chefe dos deuses cananeus, chorando a morte de Baal e fazendo cortes em seu corpo como expressão de luto:
“… Baal, o Conquistador, morreu,
o príncipe, o Senhor da Terra, pereceu.”
Então, El, o Bondoso e Compassivo,
[…] derramou terra sobre sua cabeça em luto,
E pó sobre seu crânio em lamento;
ele cingiu-se com pano de saco.
Ele cortou sua pele com uma pedra,
fez incisões com uma lâmina;
Ele cortou suas bochechas e seu queixo
fez um corte na extensão dos seus braços;
ele fez um sulco em seu peito como um jardim […]”[16]
Se até mesmo os deuses faziam incisões em seus corpos como expressão de luto, a descrição de lamentadores se cortando para atrair a atenção de um deus ou aplacar uma divindade irada faz bastante sentido. Os deuses do antigo Oriente Próximo não eram considerados oniscientes nem mesmo totalmente amáveis, misericordiosos ou atentos ao povo de sua terra. Por isso, era necessário que as pessoas fizessem algo para atrair a atenção dos deuses, que poderiam confortar os pranteadores ou proteger o espírito do falecido depois de sua morte.[17]
A descrição dos profetas de Baal fazendo cortes em seu corpo “com facas e espadas até sangrarem” (1Rs 18.28) é um exemplo de uma tentativa desesperada de chamar a atenção de Baal depois de passarem horas invocando e clamando por sua intervenção sem resposta alguma (ver 18.26-28).[18]
Quando estudamos o contexto cultural do antigo Oriente Próximo, que é reforçado por outras passagens do Antigo Testamento, parece que Levítico 19.28 proíbe os israelitas de se automutilarem como prática de luto em uma tentativa de atrair a atenção de seu Deus. Essa mutilação indicaria que o Senhor era como os deuses das nações, precisando de ações comoventes para dar atenção ou afastar sua ira.[19]
Diferente das divindades do antigo Oriente Próximo, o Deus de Israel é bondoso e compassivo com seu povo (Êx 34.6,7) e está atento às necessidades e sofrimentos da nação (cf. Êx 2.23,24; 3.6-8). Além disso, o Senhor conhece tudo o que ocorre em sua criação, portanto, não é preciso recorrer a atos comoventes, como a automutilação, para conseguir sua atenção. Israelitas em luto que se envolvessem com incisões no corpo estariam negando implicitamente que o Senhor é o tipo de Deus que ele havia declarado ser em sua revelação no Sinai.[20]
O cuidado de Deus com aqueles que sofrem alcançava também os estrangeiros no meio de Israel. Uma mulher cativa tinha trinta dias para lamentar a perda dos seus pais antes de se casar com um soldado israelita (Dt 21.13). Ela não precisava fazer cortes rituais para que Deus se preocupasse com seu sofrimento, pois o próprio Senhor se interessava por ela, estabelecendo esse tempo para que pudesse chorar e se recuperar de sua perda.
Além disso, santidade envolvia perfeição e integridade. O corpo, como criação bela e perfeita de Deus, não deveria ser lacerado ou ferido, mas mantido em sua inteireza. Feri-lo implicava romper os limites da santidade divina em Levítico.[21] “Ser santo é ser total, ser uno; a santidade é unidade, integridade, perfeição do indivíduo e da espécie”.[22]
Análise semântica
A segunda parte de Levítico 19.28 diz: “e sinal/inscrição de tatuagem não farão em vocês” (TA). Esse trecho apresenta uma expressão composta, formada por um substantivo associado ao verbo “escrever” ou “registrar” (por isso, “inscrição” ou “marca”) e outro indicando uma “tatuagem” ou “ornamentação” na pele, usada para afastar espíritos dos mortos[23] ou indicar um compromisso com algum deus.[24] Algumas evidências para isso foram encontradas no exame de restos humanos em tumbas citas datadas do século 6 a.C.[25] A lei israelita pode proibir essa prática, pois envolve uma alteração autoimposta da criação de Deus, diferentemente da circuncisão, que é comandada por Deus.
Acredita-se que a tatuagem antiga envolvia furos na pele e a inserção de pigmentos.[26] A proibição de marcar a pele pode envolver a tatuagem ou a pintura do corpo como parte de um ritual religioso, indicando que o indivíduo era servo de uma divindade em particular. Em algumas circunstâncias, o nome de um deus era tatuado em um adorador, indicando que este pertencia àquele deus específico.[27]
Embora Israel tivesse marcadores externos que manifestavam sua identidade única dentre todos os povos (e.g., formas de vestuário, corte de cabelo, filactérios e circuncisão), estas deviam ser marcas externas de uma realidade interna. O povo devia ter “coração circuncidado” (Dt 10.16; 30.6) que marcasse sua devoção a YAHWEH e era o meio principal para identificá-los como seu povo. Os israelitas que se envolviam em cortes ou tatuagem nas lamentações estavam procurando ser identificados principalmente por coisas externas.[28]
A proibição de fazer tatuagens, em Levítico 19.28b, lembrava Israel de que Deus estava constantemente presente e interessado por seu povo. Também era uma indicação de sua distinção em relação às divindades de Canaã. Como povo que servia a um Deus incomparável, Israel deveria encontrar sua identidade nas marcas que o Senhor havia estabelecido por meio de Moisés, não nas tatuagens comuns na adoração a deuses que nada eram.
Implicações
Quais seriam as implicações de Levítico 19.28 para o povo de Deus em nossos dias? Em primeiro lugar, precisamos observar que a lei de Levítico 19.28 era uma maneira de o israelita antigo reconhecer que não precisava cortar seu corpo para chamar a atenção de Javé. Ele não era como os deuses das nações, caprichosos e que exigiam algum tipo de troca para aliviar o sofrimento humano. Ao contrário, o Deus de Israel estava com seus ouvidos atentos a todo israelita que se voltasse para ele clamando por sua ajuda. Como observou o salmista: “Tu, Senhor, ouves a súplica dos necessitados; tu os reanimas e atendes ao seu clamor” (Sl 10.17, NVI). Em vez de fazer cortes ou tatuagens em seu corpo para assegurar o cuidado divino, a oração do fiel israelita era um testemunho poderoso de que “não há outro além de ti, não há Rocha como o nosso Deus!” (1Sm 2.2).
Da mesma forma, o cristão, hoje, pode colocar sua esperança em Deus em momentos de luto e de sofrimento, lembrando que ele é “Pai misericordioso e Deus de todo encorajamento. Ele nos encoraja em todas as nossas aflições…” (2Co 1.3,4). Nessas horas, podemos clamar: “Pai, socorre-me!”, e ter a certeza de que o bondoso Pai celestial estará presente para nos confortar e nos guiar.
Nosso Pai do Céu conhece a nossa fraqueza e sabe que somos pó. […] O Seu conhecimento das nossas aflições e adversidades é mais do que teórico; é pessoal, caloroso e compassivo. Não importa o que nos aconteça, Deus sabe e Se importa como ninguém mais poderá fazê-lo.[29]
Romanos 10.4 nos diz que Cristo é o “fim” da Lei (NVI), ou seja, ele é o ponto culminante da Lei mosaica, seu objetivo, “no sentido de que a Lei sempre previu e esperou ansiosamente por Cristo” (10.5,9-11). Ao mesmo tempo, Cristo é o “fim” da Lei porque “o cumprimento da Lei nele põe fim ao período de tempo em que a Lei era um elemento central no plano de Deus”.[30] Como o apóstolo Paulo observou, a Lei “foi nosso guardião até a vinda de Cristo; ela nos protegeu até que, por meio da fé, pudéssemos ser declarados justos. Agora que veio o caminho da fé, não precisamos mais da lei como guardião” (Gl 3.24,25).
Não estamos mais sob a Lei Mosaica. “Assim, meus irmãos, vocês também morreram para a Lei, por meio do corpo de Cristo, para pertencerem a outro, àquele que ressuscitou dos mortos, a fim de que venhamos a dar fruto para Deus.” (Rm 7.4, NVI). Somos agora levados a um relacionamento com Cristo em que nossa vida deve produzir fruto para Deus. Quando se trata de tatuagens, precisamos lembrar que pertencemos a Deus e fazer uma pergunta básica: Essa tatuagem produzirá frutos para Deus? Ela será expressão de meu amor por ele? Ou ela representa apenas a manifestação de um desejo de me conformar à cultura ao meu redor?
Como a Lei continua útil e ensinando princípios ao cristão hoje, ainda que não estejamos debaixo de cada um de seus mandamentos (2Tm 3.16,17), precisamos nos perguntar se existe algum paralelo em nossa experiência atual com a experiência do próprio Israel em relação à tatuagem ou às marcas no corpo como um conformação à maneira que os outros povos se identificavam ou serviam seus deuses. Neste caso, há o princípio da identificação que devemos levar em conta. Há tatuagens que estão associadas a grupos cuja razão de existência ofende o caráter de Deus (por exemplo, grupos neonazistas), já outras são trechos bíblicos, nomes de filhos ou palavras com sentido teológico significativo. Quando penso em fazer uma tatuagem, sou de algum modo governado e controlado por uma motivação distinta daquela de Cristo ou do espírito do evangelho? Minhas tatuagens expressam adoração ao corpo ou a Deus?
Uma tatuagem pode ser discreta e ter como propósito ocultar deformidades em meu corpo. As tatuagens que pretendo fazer não realçam o corpo, mas corrigem machucados ou coisas do tipo?
Se pretendo fazer tatuagens em meu corpo com um foco missional, preciso me perguntar o que a tatuagem comunica para o grupo de pessoas que desejo alcançar. Ela é simplesmente um adorno ou expressa alguma ideia ou conceito mais profundos? Em outros contextos culturais, talvez a tatuagem não seja a escolha mais sábia por talvez atrapalhar o processo de aproximação de um grupo de povo específico.
Quando pensamos nesse tema, há alguns elementos essenciais que não devemos esquecer. Deus está mais preocupado com o adorno interno, a beleza de um coração que o teme, do que o enfeite externo (1Tm 2.9; 1Pe 3.3,4). Portanto, a pergunta primária não é: “Posso tatuar meu corpo?”; mas sim: “Como posso glorificar a Deus em meu corpo (1Co 6.20) e demonstrar um compromisso de coração com o Senhor?”
O seu testemunho de vida é muito mais poderoso do que uma tatuagem (Jo 13.35; Mt 5.16). Tatuagens podem até aproximar pessoas de nós (em outros momentos, afastá-las), mas o que gera impacto e transforma a vida de outros é verem as nossas “boas obras” como fruto de devoção e entrega a Deus. O nosso amor por Deus e pelo próximo certamente terá um impacto mais profundo do que a ausência ou a presença de uma tatuagem em nosso corpo.
“Tatuar ou não tatuar?”, foi a pergunta inicial de nosso artigo. Ao final dele, somos levados a uma questão mais profunda: Como posso glorificar a Deus com meu corpo e ser uma testemunha viva de seu caráter para aqueles que me cercam?
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Referências bibliográficas:
[1]Texto publicado em 8 de março de 2018, disponível em: https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=pfbid0ezPsSE3mhg1FaSX3wyfuPpDESM3kSLZrxGJ8mGP9cibMDjzQwC5voCcpUtPfVSnJl&id=822056084538742, acesso em: 10 de janeiro de 2023.
[2]John E. Hartley, Leviticus, Word Biblical Commentary (Dallas: Word, 1992), p. xxx; Eugene H. Merrill; Mark F. Rooker; Michael Grisanti, The World and the Word: an introduction to the Old Testament (Nashville: B&H Academic, 2011), p. 221, 223-4; David W. Baker, “Leviticus”, in: David W. Baker; Dale A. Brueggemann; Eugene H. Merrill, Cornerstone Biblical Commentary: Leviticus, Numbers, Deuteronomy (Carol Stream: Tyndale House Publishers, 1996), p. 5.
[3]P. Vogt, Interpretação do Pentateuco: um prático e indispensável manual de exegese (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2015), p. 172-3.
[4]Carlos Osvaldo Pinto, Foco e desenvolvimento do Antigo Testamento, 2. ed. (São Paulo: Hagnos, 2014), p. 92.
[5]Gordon J. Wenham, Levítico: comentário exegético (São Paulo: Vida Nova, 2021), p. 267.
[6]Wenham, Levítico, p. 264-5.
[7]Jeffrey K. Salkin. Kedoshim (Leviticus 19:1-20:27) and Haftarah (Amos 9:7-15): The JPS B’nai Mitzvah Torah commentary (Philadelphia: The Jewish Publication Society, 2018), p. 3.
[8]Mary Douglas, Pureza e perigo (São Paulo: Perspectiva, 2014), p. 67.
[9]Wenham, Levítico, p. 20-1.
[10]“O sagrado é o real por excelência, ao mesmo tempo poder, eficiência, fonte de vida e fecundidade” (Mircea Eliade, O sagrado e o profano: a essência das religiões [São Paulo: Martins Fontes, 2013], p. 18, 31).
[11]Joel S. Kaminsky, “Loving one’s (Israelite) neighbor: election and commandment in Leviticus 19”, Interpretation, vol. 62, n. 2 (April, 2008), p. 127.
[12]Ver Mark F. Rooker, Leviticus, New American Commentary 3 (Nashville: Broadman and Holman, 2000), p. 262.
[13]P. Vogt, Interpretação do Pentateuco: um prático e indispensável manual de exegese (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2015), p. 175.
[14]Essa é a tradução apresentada em P. Vogt, Interpretação do Pentateuco, p. 175. O texto completo da “Maldição de Agade” pode ser encontrado em S. N. Kramer (tradutor), “The curse of Agade”, in: James Pritchard, Ancient Near Eastern texts relating to the Old Testament 3. ed. (Princeton: Princeton University Press, 1969), p. 646-51.
[15]P. Vogt, Interpretação do Pentateuco, p. 175.
[16]Mark S. Smith; Michael D. Coogan, Stories from ancient Canaan (Louisville: Westminster John Knox, 2012), p. 143.
[17]P. Vogt, Interpretação do Pentateuco, p. 176, 178. Jacob Milgrom, um dos maiores especialistas do livro de Levítico, cita B. B. Schmidt (Israel’s beneficent dead, p. 287, 290) e apresenta uma explicação interessante para a razão desse ritual fúnebre: “a automutilação poderia ser adequadamente vista como uma tentativa de abrandar a inveja que os mortos tinham dos vivos ao infligir sofrimento sobre si mesmo ou como uma tentativa desesperada de disfarçar-se e tornar-se irreconhecível para os espíritos que assombravam…” (Jacob Migrom, Leviticus: a book of rituals and ethics, Continental Commentary [Minneapolis: Fortress, 2004] [edição kindle]).
[18]J. E. Hartley, Leviticus, Word Biblical Commentary (Dallas: Word, 1992), p. 321.
[19]P. Vogt, Interpretação do Pentateuco, p. 176.
[20]Ibidem, p. 178.
[21]G. J. Wenham, The Book of Leviticus (Grand Rapids: Eerdmans, 1979), p. 272; J. E. Hartley, Leviticus, p. 320.
[22]Mary Douglas, Pureza e perigo, p. 70.
[23]L. Koehler; W. Baumgartner, M. E. J. Richardson; J. J. Stamm, The Hebrew and Aramaic lexicon of the Old Testament (Leiden: E.J. Brill, 1994–2000), p. 1116 (edição eletrônica).
[24]Mark F. Rooker, Leviticus, p. 262; P. Vogt, Interpretação do Pentateuco, p. 177; D. W. Baker, “Leviticus”, in: P. W. Comfort (org.), Cornerstone biblical commentary: Leviticus, Numbers, Deuteronomy (Carol Stream: Tyndale House, 1996), vol. 2, p. 140.
[25] John Walton; Victor Matthews; Mark W. Chavalas, The IVP Bible background commentary (Downers Grove: IVP Academic), p. 134 (edição kindle).
[26]M. Silva; M. C. Tenney, The Zondervan Encyclopedia of the Bible, ed. rev. (Grand Rapids: Zondervan, 2009), vol. 5, p. 700.
[27]P. Vogt, Interpretação do Pentateuco, p. 177.
[28]Ibidem, p. 179.
[29]A. W. Tozer, Mais perto de Deus (São Paulo: Mundo Cristão, 2007), p. 72.
[30]Douglas Moo, “A lei de Moisés ou a lei de Cristo”, in: John S. Feinberg (org.), Continuidade e descontinuidade (São Paulo: Hagnos, ), p. 251-3.
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