A Doutrina da Eleição em Perspectiva Hebraica – Teologia Pentecostal
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Por Gutierres Fernandes Siqueira
A Doutrina da Eleição é matéria de grande controvérsia no seio do cristianismo protestante. O Calvinismo defende a chamada eleição incondicional, ou seja, Deus teria escolhido alguns indivíduos para a salvação, enquanto outros expoentes dessa corrente, incluindo o próprio João Calvino, afirmam que Deus escolheu ativamente indivíduos para a perdição. O Arminianismo, por outro lado, defende que a eleição é baseada na presciência de Deus. Essas duas correntes já estavam presentes na patrística – Orígenes defendia a eleição pela presciência e Agostinho tratava a escolha eletiva como naturalmente arbitrária. O que une as duas escolas de pensamento é a crença de que a dinâmica da eleição é primordialmente individual. Independente das opiniões, não podemos ignorar que a Doutrina da Eleição está nas Escrituras.
Nas últimas décadas, especialmente com o avanço da chamada Teologia Bíblica e na esteira das discussões a respeito da Nova Perspectiva sobre Paulo (NPP), a erudição bíblica passou a prestar mais atenção nos antecedentes judaicos do Novo Testamento. No século XIX, a chamada Teologia Liberal, no afã de cavar o helenismo do Novo Testamento, acabou produzindo um Paulo ou um João mais grego do que judeu. Em parte, esse processo de “desjudaizar” o Novo Testamento era consequência direta do forte antissemitismo da cultura alemã. Mais recentemente, especialmente após as descobertas dos Manuscritos do Mar Morto, os eruditos passaram a buscar uma fonte riquíssima para o entendimento sobre o ambiente teológico do Novo Testamento: o período intertestamentário ou o chamado período do Segundo Templo. Essencialmente, o pensamento religioso do período intertestamentário “retém todas as características essenciais da fé do Antigo Testamento”. Diante disso, a chave para compreender essa difícil doutrina está no pensamento antropológico dos hebreus e na própria eclesiologia do Novo Testamento.
Os hebreus, diferente dos ocidentais, não viam o homem primeiramente a partir da perspectiva individualista. No Antigo Testamento, “a vida é sempre um estar-em-relação”. Mesmo sendo crítico do conceito do “misticismo primitivo”, que defendia que em Israel o indivíduo praticamente não existia (o que é um exagero), o teólogo anglicano John William Rogerson (1935-2018) admitia: “Continua sendo provável que os israelitas viam a sociedade como um agregado de grupos e não como uma coleção de indivíduos, que no culto o rei podia incorporar as aspirações de toda a comunidade, e que os indivíduos no culto ou na oração podiam sentir que suas experiências eram as de todo o grupo”. O eleito é a nação da Israel e a eleição é acima de tudo corporativa. “Só raramente a escolha divina se refere a indivíduos (com exceção de reis)”, mas o rei “não é um governante divino ao estilo pagão, mas é eleito por Deus para garantir a direção divina do destino do povo sobre um fundamento religioso. É por causa de Israel que Deus estabelece Davi (2 Sm 5.12); o povo do rei é povo de Deus (Sl 28.8)”. O rei, por assim dizer, é um arquétipo representativo de povo eleito.
No Novo Testamento, Jesus é apresentado como o eleito (Lc 9.35 NAA; 1 Pe 2.4, 6). Da mesma forma, a Igreja, enquanto comunidade, é a eleita (Ef 1.4; 1 Pe 1.1; 2.9; 2 Jo 1.1, 13; Ap 17.14). “A Igreja é continuidade fundamental, ou orgânica, de Israel na qualidade de povo eleito de Deus”. A qualificação da comunidade como “reino de sacerdotes, nação santa e povo eleito” remonta ao Antigo Testamento (cf. Êx 19.6; Is 43.20 LXX). Numa perspectiva escatológica, a comunidade de Qumrã se descrevia corporativamente como “eleita pela graça”. No conhecido trecho sobre a eleição escrito pelo apóstolo Paulo aos Efésios (1.3-14), ele menciona que a Igreja é escolhida, predestinada, filiada, redimida, além de ser herança e posse do Senhor. É importante apontar que todos esses termos são usados no Antigo Testamento para se referirem a Israel. Veja, por exemplo, as palavras: escolhido/predestinado (Dt 4.37; 7.8), filiação (Dt 14.1), redenção (Is 41.14), herança (Dt 4.21) e posse (Êx 6.8; 19.5). Mesmo o famoso texto de Isaías 29.16, citado pelo apóstolo Paulo em Romanos 9.20, está claramente em um contexto comunitário. A frequente objeção de que a eleição corporativa não é a eleição do povo, mas apenas a eleição de um conjunto vazio peca em perceber que a eleição de um povo sempre começa pelo indivíduo representativo. A eleição de Israel se inicia em Abraão e a eleição da Igreja começa em Jesus Cristo. Enquanto isso, a nossa eleição individual não é nem divorciada de Cristo e nem da Igreja, pelo contrário, está subordinada a essa realidade comunitária.
A eleição não é um termo exclusivamente soteriológico. Na teologia hebraica, “a eleição de Israel é uma eleição para responsabilidade e obrigação, não meramente para uma posição de privilégio. O AT não concebe a eleição como um ato de favoritismo”. A nação de Israel havia sido eleita para tornar-se um povo separado ao Senhor (Dt 14.2), mas em muitas oportunidades os israelitas confundiram o status de eleito com o orgulho nacionalista e cultivaram uma certeza arrogante na proteção de YHWH (Jr 7.3-10; Mq 3.11). Com o tempo, infelizmente, a nação de Israel esqueceu que a eleição era um ato da misericórdia divina e não se dava pela grandeza da nação (Dt 7.6-11; 9.4-5). A eleição tinha o objetivo primário de tornar Israel uma bênção para todas as nações (Gn 12.1-3) – era uma eleição de efeito missionário (cf. Is 42.1; 43.10). O teólogo anglicano Christopher Wright pontua sabiamente: “A eleição precisa ser vista como uma doutrina da missão, não como um cálculo aritmético da salvação”.
N. T. Wright, também de tradição anglicana, em sua obra magna Paul and the Faithfulness of God expõe um longo ensaio sobre a Doutrina da Eleição mostrando que na teologia paulina esse tema está ligado à messianidade de Jesus de Nazaré. Wright afirma: “A cristologia, nos vários sentidos que essa palavra deve assumir, é a primeira grande lente através da qual Paulo contempla a antiga doutrina da eleição de Israel”. Wright nos lembra que o Messias é aquele que cumpre as responsabilidades da nação eleita e a incorpora. O Messias é o eleito por excelência:
Defendemos que Paulo considerava Jesus como o Messias de Israel, e que ele via e expressava essa crença em termos da soma do Messias de Israel em si mesmo, lançando assim uma nova solidariedade na qual todos aqueles “nele” seriam caracterizados pela sua “fidelidade”, expressa em termos da sua morte e ressurreição. Esta, sugiro agora, é a chave e o fundamento para a forma como Paulo retrabalhou a crença judaica na eleição de Israel. Dentro disso, é a chave e o fundamento para a sua famosa doutrina da justificação. A junção do Messias com Israel fornece um caminho para o próprio coração das crenças soteriológicas de Paulo, que reúne os elementos regularmente desmembrados de seu pensamento e escrita em um todo completo e coerente (grifos meus).
Mas a Bíblia não menciona a eleição de indivíduos? Sim. Observe, por exemplo, a passagem em 1 Reis 8.16: “Desde o dia em que eu tirei o meu povo de Israel do Egito, não escolhi cidade alguma de todas as tribos de Israel para edificar alguma casa, para ali estabelecer o meu nome; porém escolhi a Davi, para que governasse sobre o meu povo de Israel” (ARC). O texto fala simultaneamente da eleição de Jerusalém e de Davi. Embora Davi seja um indivíduo, ele é acima de tudo o representante institucional da nação. Como já mencionado, a nossa perspectiva ocidental não consegue captar muito bem a ideia de um indivíduo que seja o arquétipo de um povo, mas essa mentalidade de “solidariedade” permeava entre os povos antigos, inclusive sobre Israel. A Eleição Corporativa não exclui a dimensão individual da eleição. Os expoentes da Eleição Corporativa não negam individualidade eletiva, mas avaliam qual é a “orientação primária da eleição”. Essa orientação primária, naturalmente, não elimina a orientação secundária. É verdade que o Calvinismo também não nega a Eleição Corporativa, mas reafirma essa corporatividade sobre as bases da Eleição Individual – quando a lógica bíblica opera de modo contrário. Embora o calvinismo tenho recebido essa influência de Agostinho, não é exagero especular que o ambiente renascentista – e, portanto, humanista – da educação europeia tenha facilitado esse foco no indivíduo. O que, naturalmente, piorou ainda mais com o advento do Iluminismo, ambiente histórico do escolasticismo reformado.
Assim como no antigo Israel, a ênfase exagerada na Doutrina da Eleição também produziu nacionalismos de fundo religioso – como é o caso da América puritana e, mais recentemente, no movimento do “Destino Manifesto”. Embora os países de influência calvinista (Países Baixos, Inglaterra puritana, América inglesa) tenham desenvolvido mais rapidamente o conceito de igualdade, direitos humanos e democracia representativa, ao mesmo tempo, produziram uma política persistente de segregação (negros na América do Norte e África do Sul, além dos aborígines na Austrália). Esses fenômenos segregacionistas, xenofóbicos e nacionalistas foram chamados pelo teólogo alemão Wolfhart Pannenberg (1928-2014) de “fé secularizada na eleição”. Enquanto isso, os católicos (portugueses e espanhóis), mesmo mais dependentes da desigualdade, do autoritarismo e da hierarquia, aderiram com menos resistência à miscigenação.
O conceito de Eleição Corporativa, embora hoje seja associada aos teólogos arminianos, não era a visão de Jacó Armínio e nem mesmo dos primeiros arminianos da Remonstrância. Como já dito no primeiro parágrafo, tanto o Arminianismo como o Calvinismo desenharam a Doutrina da Eleição em termos individualistas. Essa perspectiva corporativa ganhou mais espaço na erudição católica e protestante (especialmente entre os eruditos anglicanos) à medida que os teólogos deram mais vasão para a matriz judaica do Novo Testamento. O aprofundamento no Antigo Testamento não é apenas importante para entender o processo de descontinuidade entre as alianças, mas acima de tudo para entender o que foi continuado pela nova roupagem do Novo Testamento. É impossível entender o Novo Testamento sem uma boa compreensão do Antigo Testamento. Faz-se urgente, também, descartar a influência de qualquer processo antissemita na leitura das Escrituras. Devemos, por assim dizer, evitar os extremos dos judaizantes sem cair nos extremos dos antissemitas.
Curiosamente, talvez a primeira defesa mais enfática no último século da Eleição Corporativa tenha sido dada pelo teólogo reformado Karl Barth (1886-1968). Barth defendia a eleição cristocêntrica e criticava os reformadores pela fraqueza em apontarem a “fundamentação cristológica” da eleição. Barth defendia a ideia que na cruz Jesus era tanto o opróbrio quando o eleito de Deus. Em um texto escrito em 1931 intitulado “A eleição de Deus em graça”, Barth observa:
Nem sempre se levou devidamente a sério o princípio de que não devemos reconhecer o que significa eleição e rejeição à base de algum modelo de pensamento de origem lógica, nem, portanto, das imagens da nossa experiência, e sim em Jesus Cristo, e somente nele. (…) Não se esclareceu com a devida nitidez o que se queria dizer ao afirmar, com o Novo Testamento, que justamente “nele”, em Cristo, é que estamos eleitos e que, portanto, devemos reconhecer nossa eleição precisamente e apenas “nele”. (…) ‘Eleitos em Cristo’ indica-nos ainda o reconhecimento da eleição a partir da ressurreição de Jesus Cristo. Fico espantado com o fato de que precisamente ao fazer esta reflexão final sobre a fundamentação cristológica da doutrina da predestinação, o quanto vejo, não posso apoiar-me nem em Agostinho, nem em Lutero, nem em Calvino.
Outro nome proeminente da teologia protestante europeia que defendia enfaticamente a Eleição Corporativa era o – já citado – Wolfhart Pannenberg. Esse teólogo luterano afirmou: “O ato da eleição dirige-se a pessoas individuais não em sua dissociação de todas as relações sociais, mas com uma função determinada em favor do povo”, ou em outras palavras, a eleição individual acontece tão somente dentro do aspecto corporativo da nação de Israel e do Corpo de Cristo.
O Povo de Deus e a Eleição Corporativa
É provável que a eclesiologia seja uma das maiores fraquezas do protestantismo. Mutilado diante de inúmeras disputas teológicas e políticas, o protestantismo enxergou em tempo real a fragmentação de um organismo que deveria pulsar em torno de um único propósito. O apóstolo Paulo, em sua elevadíssima visão sobre a Igreja, afirmou que: “há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança da vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos, e em todos” (Efésios 4. 4-6 ARC). Todas as grandes imagens da Igreja realçam a sua unidade. Sobre isso, o teólogo anglicano Charles Sherlock observa:
A Igreja, a expressão visível dessa participação, que o Espírito Santo traz à existência em e através de Cristo, é não somente uma coleção de indivíduos (embora seja pelo menos isso), mas é descrita no Novo Testamento através de termos físicos, corporativos: o “rebanho”, a “vinha”, a “noiva”, e especialmente o “corpo” de Cristo. A Igreja não é um ajuntamento de pecadores justificados ou uma instituição sacramental ou um meio de autossalvação particular, mas a vanguarda da nova criação.
A imagem neotestamentária do “povo de Deus” é mais forte do que a espiritualidade desconectada e individualista – essa fé egoísta que confunde “salvação de almas” com um mero passaporte unitário para o céu. Embora Deus seja um ser pessoal e imanente – o Deus conosco – a Sua relação salvífica envolve todo o cosmo: “A natureza criada aguarda, com grande expectativa, que os filhos de Deus sejam revelados” (Rm 8.19 NVI; cf. 19-22). Isso não quer dizer que a salvação seja universalista, até porque a graça demanda espaço para a rejeição a esse amor, mas a salvação é universalizante, não fazendo acepção de pessoas. A salvação, igualmente, é não apenas a redenção dos pecados, mas, também, é o chamado para a proclamação do Reino de Deus em palavras e ações através da comunidade, da Igreja Eleita. “Esse senso de responsabilidade social comunitária, que normalmente não existe mais nos tempos modernos, está no coração da compreensão paulina do real significado de sermos povo de Deus”, como afirma o teólogo assembleiano Gordon D. Fee. O Reino de Deus já é manifesto entre nós através de Cristo, do Espírito, da Palavra e da Igreja (Lc 17.20-21). Felizmente, o drama da redenção não é a história de alguns indivíduos privilegiados que tiveram a sorte de serem contemplados na “roda da fortuna” de Deus, mas é a história de um povo eleito cuja missão é encarnar a realidade do Reino dos Céus neste mundo.
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Referências e Notas:
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