Entendendo o centro gravitacional da discussão sobre o uso do AT no NT
- INTRODUÇÃO
Ler a Bíblia é uma das disciplinas fundamentais para qualquer cristão. No entanto, a simples decodificação das palavras e frases não possibilita ao indivíduo compreensão, utilização e reflexão sobre o que está escrito. Para que o crente possa compreender, utilizar e aplicar é necessária uma interpretação. Assim, o esforço empregado na elaboração deste trabalho objetiva levar o leitor a adquiri mais ferramentas para suas interpretações bíblicas.
A justificativa mais plausível para um texto dessa natureza está relacionada a investida que tem acontecido nos anos recentes na interpretação bíblica relacionada a intertextualidade. A abrangência de assuntos relacionados ao tema e a complexidades das questões podem levar o estudante ao desencorajamento. É considerando isso que este trabalho se apresenta como um mapa para que o leitor não iniciado no debate possa se situar e desenvolver sua jornada.
- O CENTRO GRAVITACIONAL DA DISCUSSÃO E AS QUESTÃO QUE GIRAM EM SUA ÓBIRTA
No ano de 2008 Kenneth Berding e Jonathan Lunde, editaram o livro Three views on the New Testament use of the Old Testament. Nesse livro os organizadores convidaram três eruditos que possuíam visão diferentes sobre a relação entres os testamentos para apresentarem suas próprias posições e questionarem as visões discordantes. Walter Kaiser Jr, defendeu a visão conhecida como Significado Único – Múltipla Aplicação; Darrell Bock ficou responsável por pleitear em favor da compreensão de Um significado, múltiplos contextos e referentes; Peter Enns contribuiu com a obra com a exposição da visão Significado mais completo, objetivo único. Mais adiante neste trabalho será apresentada com maior riqueza de detalhes essas visões. Para agora, no entanto, faz-se necessário apresentar aquilo Lunde chamou de o centro gravitacional da discussão.
Parte da complexidade dos estudos da intertextualidade está relacionada a quantidade de perguntas que o estudante precisa responder enquanto pesquisa os diversos usos do AT no NT. De acordo com Silva e Andrade algumas questões “trabalham um tema atomicamente, outras, contudo, trabalham perguntas que sobrepõem temas relacionados como se fossem uma única coisa.” (2021, p.163) Os autores colocam as seguintes perguntas: uma vez que há uma transposição do texto para um contexto bem diferente daquele que foi escrito originalmente? Não haveria nenhuma mudança de significado com a mudança de contexto? Todo o sentido posto no AT é trazido para o NT quando há citação ou alusão? Depois concluem que os temas significado e contexto são sobrepostos, pois como eles mostram: “um não pode ser respondido sem o outro, contudo, deve-se notar que apesar de o contexto dar os limites do significado de uma passagem, ele per si não é o significado” (2021, p.163) Assim, os estudiosos apontam para a necessidade de se encontrar questões gerais que possibilitem aos estudantes se situarem no escopo da disciplina e partirem em busca de uma organização mais sistemática e didática. Para Lunde (2008) essas questões orbitam em torno do seguinte núcleo: A relação entre intenção autoral dos autores do AT e do NT. Conforme se vê no gráfico abaixo:
Gráfico 1: Centro gravitacional da discussão.
Elaborado por Lunde (2008).
A primeira questão colocada por Lunde (2008) diz respeito ao Sensus Plenior, na qual Lunde deseja saber se essa é uma maneira adequada de explicar o uso do AT pelo NT. Ele coloca da seguinte maneira:
Nossa primeira questão orbitante diz respeito à possibilidade de múltiplas camadas de significado nas próprias palavras das escrituras. Para resolver o aparente atrito entre as intenções dos autores do AT e do NT, alguns apelam para um significado “mais completo” da Escritura divinamente intencionado que é discernido pelos autores inspirados do NT – o chamado sensus plenior (lit., o “mais completo” senso”). (2008, p.13)
A segunda questão é a seguinte: como a tipologia pode ser mais bem compreendida? A palavra tipologia deriva da palavra τύπος no grego que significa padrão ou modelo (ARNDT et al, 2000, p.1020). No entanto, a questão não pode ser resumida ao seu significado etimológico. Esse tratamento é útil apenas para menção inicial, tendo em vista que usamos várias palavras com um sentido alheio a ela e há o perigo de cometer a falácia do radical. Essa tem sido uma das questões mais espinhosas dos estudos sobre os usos do AT no NT.
O aspecto importante da tipologia para nossos propósitos tem a ver com a relação entre a referência tipológica e aquilo que o autor humano pretendia. Declarado em forma de pergunta: O elemento prospectivo divinamente intencionado na tipologia é conhecido pelo autor humano original, ou isso é apenas verificado retrospectivamente do ponto de vista do autor do NT? Como a maioria afirmaria que o sentido tipológico não é discernido por meio da investigação histórico-gramatical, que se preocupa com o significado claramente pretendido pelo autor, como essa referência adicional se relaciona com o sentido original da passagem? Como é o caso de cada uma dessa questões chamadas orbitantes, há uma variedade de opiniões aqui.
Segundo Baker, podemos dividir em duas categorias as definições de tipologia no debate moderno: aquelas que (1) compreendem definições centrando na ideia de “prefiguração” e aquelas que (2) compreendem definições centrando na ideia de “correspondência” (BAKER, 1994, p.315).
Na primeira categoria pode-se apresentar o nome G. K. Beale que definiu a tipologia como “o estudo das correspondências analógicas entre verdades reveladas acerca de pessoas, fatos, instituições e outros elementos no âmbito do plano histórico da revelação especial de Deus; correspondência essa que, do ponto de vista retrospectivo, são de natureza profética e têm sentido intensificado” (BEALE, 2013, p.36). Ele aponta como elementos essenciais de sua definição do tipo os seguintes tópicos: (1) correspondência analógica, (2) historicidade, (3) caráter prenunciativo, (4) intensificação e (5) retrospecção (BEALE, 2013, p.36). Em Bock (2008) se vê algo semelhante, para ele a tipologia precisar considerar o aspecto profético.
A classificação de tipologia de Bock considera que uma tipologia pode ser tipológica-PROFÉTICA ou TIPOLOGICA-profética. Na primeira, há uma referência histórica de curto prazo e ainda assim as promessas do padrão precisam ser preenchidas para serem totalmente cumpridas. A passagem exige cumprimento adicional, porque a Palavra de Deus é verdadeira. Na segunda, o padrão não é antecipado pela linguagem, mas é visto quando o padrão último acontece. Somente então, a conexão se torna clara. Assim, a tipologia é uma categoria profética, porque Deus designou um referente. Mas funciona de maneira diferente da categoria anterior, pois os padrões não são antecipados ou procurados até que o cumprimento torne o padrão aparente. (2008)
Dentre aqueles que consideram o tipo como correspondência estão Slusser e Alburquerque. Para Slusser um tipo pode ser definido da seguinte maneira:
Tipologia é o estudo dos padrões divinamente planejados pelo Deus Soberano enquanto trabalha na história humana para realizar os seus propósitos. No progresso da revelação, uma situação histórica anterior se torna um padrão (tipo) que se repete e corresponde com uma situação na vida e ministério de Jesus Cristo (antítipo), desta forma, ele “cumpre” o padrão anterior de uma maneira claramente identificável e intensificada. (SLUSSER apud ALBURQUERQUE, 2022, p.19)
É importante observar que Slusser oferece critérios mais objetivos para se reconhecer os tipos e seus respectivos antítipos. São eles: (1) correspondência substancial; (2) historicidade; (3) intensificação; e (4) identificabilidade. Albuquerque falando sobre tipos fez as seguintes pontuações:
Tipo não é uma predição, mas uma simples pessoa, evento ou instituição registrado como um fato histórico, sem nenhuma referência ao futuro. Tipologia, desta forma, não é uma alegoria sendo que está embasada na história e assim não se desvia dos personagens históricos aos quais se referem. Tipologia não é exegese, mas uma aplicação específica de uma realidade histórica anterior. Profecias são conhecidas, compreendidas e repassadas dessa maneira pelo autor humano do AT. Mas a tipologia é uma perspectiva do NT que não é conhecida pelo autor do AT. Um tipo não é uma previsão. Consiste essencialmente em olhar para trás e discernir exemplos anteriores de um padrão que agora atinge seu ponto culminante. Não há indicação em um tipo, de qualquer referência direta ao futuro; ele é completo e inteligível em si mesmo. Não há indicação de que o autor tivesse tal intenção. É uma questão de aplicação, não de exegese. Se perguntado, o autor do AT não saberia que era um tipo. O fato de o NT ver um evento do AT como um tipo não esclarece sua interpretação em seu contexto do AT. A tipologia não é uma via de mão dupla. (2022, p.19)
O que se vê em Albuquerque é a afirmação categórica da impossibilidade de predição por parte de tipo. A visão de correspondência apresenta categorias de análises mais verificáveis e objetivas, conservando com mais grau de clareza o significado do primeiro texto.
A terceira questão quer saber se os escritores do NT levam em conta o contexto das passagens que citam? Ao responder essa pergunta os estudiosos podem tocar em doutrinas fundamentais da fé cristã. Como por exemplo, se os autores do NT não levaram em conta o contexto do AT, por que os cristãos deveriam fazê-lo? Feito pergunta Zuck (1994), se existem discrepâncias entre o AT e as citações no NT, podemos continuar confiando na inerrância? Por isso, perguntar se autores do NT encontraram significados que seriam estranhos ao AT é tão importante.
Silva e Andrade afirmam “esta pergunta é fundamental, porque se sim, os próprios autores neotestamentários colocariam em xeque a confiabilidade do texto bíblico, podendo a abordagem deles ser considerada até mesmo um tipo de reader–response.” (2021, p.163) Moo faz o seguinte questionamento “como podemos conceber uma completa veracidade aos escritos que parecem compreender ou aplicar incorretamente aqueles textos dos quais eles derivam a autoridade e a argumentação para muitas de suas assertivas básicas e ensinos?” (Moo, 2018, p.197). Silva e Andrade afirmam “note a relação sentido do texto-doutrina da inerrância nas perguntas. A doutrina da inerrância – de que a Bíblia é completamente verdadeira em tudo o que ensina – requer que o sentido que o autor neotestamentário recupera do AT esteja realmente lá.” (2021, 164)
A quarta questão está relacionada à se uso de métodos exegéticos judaicos pelos escritores do Novo Testamento explica o uso do Antigo Testamento no Novo Testamento. Em outras palavras, seu uso do AT pelo NT se assemelha às maneiras pelas quais as Escrituras foram empregadas em Qumran, por Filo ou Josefo, ou nos escritos rabínicos subsequentes? Embora alguns desses métodos representem uma abordagem de senso comum ao texto e pareçam legítimos aos intérpretes modernos, alguns deles permitem uma liberdade substancial ao intérprete na modelagem e aplicação do texto.
Os métodos do segundo templo mais conhecidos são os pesher e o midrash. O midrash é um método que começa com as Escrituras, mas que procura explicar significados ocultos e embutidos, mergulhando no espírito do texto para contemporizá-lo, derivando significados que não são imediatamente óbvios. (LONGENECKER, 1976, p.32) Essa foi sem dúvida o método interpretativo mais recorrente entre os Judeus. A palavra hebraica “midrash” deriva de uma outra cujo significado é “procurar.” Nessa abordagem o texto é o ponto inicial e, a partir daí, procura-se uma aplicação prática para o fiel. Para isso, os intérpretes seguem regras interpretativas acordadas que vão desde princípios óbvios até aqueles que permitem interpretações mais imaginativas[1]. A máxima básica do midrash é ‘isso (texto) tem relevância para isso (uma determinada área da vida)’; ou seja, o que está escrito nas Escrituras tem relevância para nossa situação atual.
Outra escola de interpretação do judaísmo do segundo templo é conhecida como pesher. Essa prática não intenta explicar o texto, apenas mostrar onde ele se encaixa. A palavra aramaica “pesher” significa “solução”. A pressuposição básica desse método interpretativo é de que o texto contém um “mistério” comunicado por Deus que não pode ser entendido até que a solução seja encontrada por um intérprete inspirado. Esse método visa descobri o significado, não o aplicar. Pesher inicia por uma pessoa ou evento ao invés do texto em si e diz “isso (pessoa ou evento) é aquilo (o que a escritura diz). O pesher é especialmente visto na literatura de Qumram.
O debate aqui se desenvolve à medida que os estudiosos argumentam em favor ou não do uso dos métodos exegéticos do judaísmo do segundo templo.
A última questão que orbita em torno do centro gravitacional é: Somos capazes de replicar as abordagens exegéticas e hermenêuticas do Antigo Testamento que encontramos nos escritos do Novo Testamento? Se esta quinta questão for respondida afirmativamente, a mesma questão sobre a relação entre os significados dos autores do AT e do NT passará agora para a relação entre os significados dos autores do AT e os intérpretes modernos. Como Lunde aponta a órbita desta quinta questão, portanto, está mais afastada do centro (2008, p. 33).
As opções postas podem mudar drasticamente os rumos da interpretação. Se alguém chegar à conclusão de que os escritores do NT fizeram uma exegese histórico-gramatical, então não deveria haver nenhuma razão para inibir os intérpretes modernos de replicar o trabalho, pelo contrário, eles devem ser estimulados a seguirem.
Outra opção é reconhecer o único e autoritário papel que os escritores inspirados do NT desempenham em sua interpretação e lida com o texto do AT. Como intérpretes pós-período apostólico não compartilham da mesma autoridade, não se deve tentar seguir os autores do NT no uso de Procedimentos exegéticos do Segundo Templo (por exemplo, pesher, midrash) em sua própria interpretação e aplicação do AT.
Considerando o que foi acima, portanto, pode-se concluir essa seção apresentando a tabela que Berding fornece para resumir como três visões dentro do debate sobre o uso do AT no NT respondem a cinco perguntas que o autor apresenta como centro gravitacional da discussão:
KAISER[2] | BOCK[3] | ENNS[4] | |
Sensus plenior é uma maneira apropriada de explicar o uso do AT no NT? | não, pois tudo que é afirmado na passagem do AT precisa ter feito parte do significado pretendido do autor humano. | Sim, mas apenas no sentido limitado. Ele reconhece que os escritores do AT nem sempre puderam ver cumprimentos que surgem mais tarde. | Sim, porque Cristo como o Telos mantém tudo junto. Isso, porém,
não é o caminho para resolver a “tensão hermenêutica” |
E as tipologias, existem? | Sim, mas deve ser visto pelo autor original e possuir “indicação divina” de que é um tipo. | Sim, é fundamental para a resolução de casos difíceis; pode ser prospectivo ou retrospectivo. | Sim, mas novamente não é a maneira de resolver a hermenêutica
tensão. |
Os escritores do NT levam em conta o contexto das passagens citadas? | Sim, tanto o contexto literário imediato quanto contexto “promessa-plano” são importantes. | Sim, o “contexto exegético” imediato é utilizado, mas o “contexto canônico” é a chave. | Às vezes sim e às vezes não. |
O uso dos métodos exegéticos judaicos explica o uso do AT no NT? | Não, essas comparações são
equivocado. |
Às vezes sim, mas é um uso limitado pelo compromisso dos autores do NT
por uma leitura canônica. |
Sim, e isso é
a questão central na discussão. |
Podemos replicar a abordagem exegético-hermenêutica encontrada nos escritos do NT? | Sim, porque os autores do NT são intérpretes cuidadosos apenas
como deveríamos ser. |
Sim, especialmente o apelo sobre
temas canônicos. |
Sim, mas menos em termos de seus métodos exegéticos e mais em termos de seu objetivo “cristotélico”. |
3. VISÕES SOBRE O USO DO AT NO NT
Essa segunda seção, tem por propósito apresentar as várias abordagens cristãs sobre o uso do AT no NT. É importante que se diga que o esforço deste autor se concentrará nas visões em si, contudo alguns de seus representantes também serão introduzidos. Reconhece-se que nesse trato não se pretende dar conta das complexidades que envolvem a questão, pois é possível que uma mesma visão possa apresentar diferenças. Por isso, este autor ressalta que a presente exposição pretende ser apenas uma apresentação introdutória. Contudo, ela será útil para introduzir o leitor e poderá apontar caminhos para aqueles que pretenderão se aprofundar no assunto.
3.1 Significado Único – Múltipla Aplicação
A abordagem do significado único defende que só há um sentido para os textos do AT e este era conhecido por ambos: autor divino e humano. Segundo os seus proponentes, os autores do AT “possuíam uma compreensão do que estavam escrevendo, que era suficientemente adequada para perceberem as implicações e os resultados daquilo que estavam dizendo” (KAISER, 2021, p.142). Para essa posição o autor humano sabia o significado completo do que ele escrevia e que todo uso posterior foi feito respeitando o contexto original. Por isso, essa abordagem também é chamada de uso contextual consistente do AT pelos escritores do NT. A diferença, no entanto, entre os profetas que anunciaram os acontecimentos futuros e os cristãos que vivem após o seu cumprimento é ilustrada por Douglas Stuart mediante o exemplo de dois homens que escutam a descrição de um determinado lugar: um deles esteve no local e consegue compreender melhor os detalhes da exposição do que aquele que ainda não esteve, mas ambos entendem o que é comunicado. (1980, p.12) Os principais representante acadêmico dessa visão são Walter C. Kaiser e Douglas Stuart. Kaiser defendeu sua posição no livro The Uses of the Old Testament in the New e Douglas Stuart no Old Testament prophet’s self-understanding of their prophecy.
No que diz respeito à crença de que há apenas um significado para um texto da Escritura. Ryle declarou:
Eu defendo que é um modo muito perigoso de interpretar as Escrituras, considerar tudo o que as suas palavras podem ser distorcidas a significar, como uma interpretação legítima das palavras. Eu me posiciono, sem dúvida, de que há uma poderosa profundidade em toda a Escritura, e que, no que diz respeito a isso, ela é única. Mas, eu também defendo que as palavras das Escrituras pretendiam ter um sentido definido, e que nosso primeiro objetivo deveria ser descobrir esse sentido e aderir rigidamente a ele. Eu acredito que, como regra geral, as palavras das Escrituras pretendem ter, como todas as outras línguas, um significado claro e definido, e que dizer que as palavras realmente significam uma coisa, simplesmente porque elas podem ser distorcidas em direção a esse significado, é uma maneira muito desonrosa e perigosa de lidar com as Escrituras. (1953, p. 383)
Comentando a citação de Ryle, Kaiser afirma, “Eu não poderia concordar com mais entusiasmo; pois isso tem se tornado o padrão pelo qual eu não somente interpreto o texto como um professor bíblico, mas é a mesma visão que eu pressiono urgentemente outros evangélicos a adotarem.” (2009, p.46) Essa citação foi a base para o resto da defesa da posição uso do significado único.
É preciso compreender como um importante fator para essa visão a crença que os escritores do NT respeitaram fielmente à intenção autoral das passagens do AT que eles citavam. Como disse Bock (1985b, p. 306): “O que o profeta pretendia, Deus pretendia; e ele não pretendia nada mais do que o profeta”. O fundamento teórico desta abordagem é que se “hermenêutica for ter validade, então tudo que é afirmado na passagem do Antigo Testamento precisa ter feito parte do significado pretendido do autor humano” (BOCK, 1985a, p. 210). Assim, os proponentes dessa visão rejeitam qualquer separação entre o significado pretendido pelo autor divino e pelo autor humano.
A ideia é que existe uma ligação entre o significado das passagens do AT citadas e como os autores do NT as usam. Desta feita, os escritores do NT usaram o AT contextualmente e de acordo com a intenção autoral dos autores do AT, como descoberto pela hermenêutica histórico-gramatical. Sobre isso Vlach falou:
Essa abordagem leva em consideração os conceitos de tipologia, teologia informadora prévia, uma esperança messiânica específica e representação corporativa na qual um representa muitos. Se entendermos o significado desses conceitos e que os escritores da Bíblia estavam se confiando nestes, então, muitas dos supostos usos não contextuais do AT se mostrarão como sendo contextuais. (2022, p.32)
É importante ressaltar que os seguidores dessa visão reconhecem que nem toda intertextualidade entre o AT e NT irão imediatamente fazer sentido para os leitores modernos ou mesmo serão identificadas. Contudo, eles argumentam “quando o AT e a sua teologia informativa, da qual as pessoas do NT estavam cientes, são levadas em conta, ficará evidente que os escritores do NT estavam usando o AT de uma forma contextual.” (VLACH, 2022, p.32) O caminho estabelecido, portanto, é: análise exegética do AT em seus próprios termos e então comparar as conclusões dos autores do NT chegaram e se sua construção se apresenta como uma aplicação do AT ou uma reinterpretação, deixando claro que, para essa visão, nunca haverá reinterpretação ou acréscimo de sentido.
A consequência natural do que foi posto acima leva os teóricos a afirmarem que os escritores do NT não usam o AT de formas completamente estranhas às intenções dos escritores do AT. Vlach comentando a questão afirmou:
Os escritores do NT não revelam ou adicionam significados novos ou diferentes a passagens do AT ou alteram/transcendem os significados originais do AT. Existe uma clara distinção entre o significado do texto e a aplicação do texto. O significado é um, e se refere à intenção autoral do autor humano inspirado por Deus, enquanto a aplicação pode ser variada ou existir muitas. Em outras palavras – um texto pode ter um significado com diversas aplicações. Não é necessário para os autores do AT saberem de todas as implicações ou aplicações dos seus textos por outros autores bíblicos, entretanto, quando os escritores do NT usam passagens do AT, esses usos são consistentes com as intenções dos autores humanos do AT. (2022, p.33)
Ao expor a abordagem dessa forma Vlach aponta para a necessidade de distinção entre uma aplicação de uma exegese. Sobre essa questão Kaiser falou acertadamente: “Muitas profecias têm um desdobramento de aplicações ou cumprimentos como forma de assegurar que a palavra seja mantida viva enquanto aguarda pelo cumprimento final, mas todos esses desdobramentos compartilham de um mesmo sentido”. (2008, p.153)
Embora reconheçam a convergência do autor divino e do autor humano, eles não reconhecem qualquer significado pretendido por Deus que esteja escondido ou que vá além do que autor humano pretendeu como sugerindo uma espécie de sensus plenior. No que se refere ao sensus plenior definido por Raymond Brown, Kaiser (2008, p.48) questiona: “Como Brown tira o sentido pretendido das mãos dos autores humanos que estavam no conselho de Deus, a pergunta é: em cujas mãos agora o tribunal final de apelação repousa por descobrir o significado autoritativo de um texto bíblico?”. Note que o receio que subjaz seu pensamento é quanto à autoridade da Bíblia. Seu receio é de que abrindo a porta para um sentido mais amplo, também se abrirá para arbitrariedade e desconsideração da exegese histórico-gramatical. Moo (2018, p. 233) declara que “ninguém tem voltado mais atenção às implicações do uso do AT no NT para a inspiração e à inerrância do que Walter Kaiser Jr”.
Na visão do significado único o que o autor humano pretende através do que ele escreve é exatamente o que Deus pretende totalmente que ele comunique. Dessa forma não há necessidade de procurar qualquer significado divino além do que o autor humano queria dizer por que o que Deus pretendia comunicar está posto e pode ser encontrado na intenção inspirada do autor humano. Negar isto é adicionar subjetividade desnecessária ao processo interpretativo já que se abre a possibilidade de encontrar um significado que não pode ser alcançado ao se estudar o texto. Conforme Vlach reconhece corretamente “as Escrituras envolvem ‘escritos’ e se existe significado além dos escritos isso traz questionamentos no que diz respeito à natureza das Escrituras e abrem a Bíblia a especulações subjetivas desnecessárias sobre as quais não há autoridade para julgar.” (2022, p.35) Adeptos dessa visão do uso significado única afirmam que quando Deus quer dar revelação posterior, Ele o faz na forma de Escritura posterior inspirada que se harmoniza com a revelação anterior. Deus pode e irá oferecer revelação adicional quando Ele quiser.
Como mencionado anteriormente, essa abordagem afirma ser consistente com a revelação progressiva na qual os primeiros escritos e suas formulações são utilizados pelos autores posteriores. A isto chamados de intertextualidade. Esse termo foi definido por Chou da seguinte maneira: “significa a maneira como os escritores bíblicos fazem referências a outras partes das Escrituras. Mais especificamente, refere-se à maneira como os autores inspirados explicaram revelações anteriores ao escreverem seus textos.” (2021, p.11) A partir disso questões teológicas são erigidas e a resolução envolve conceitos como solidariedade corporativa na qual um cabeça representativo representa muitos. Isso é encontrado no conceito de “semente” o qual pode ter tanto um aspecto individual e um aspecto de “muitos”. Também envolve uma esperança messiânica específica na qual os santos do AT esperavam um libertador vindouro.
Da mesma forma, essa visão acredita que a revelação posterior se desenvolve sobre a revelação anterior, mas não a reinterpreta. Ela também reconhece a presença de tipologia na qual pessoas, eventos e instituições do AT correspondem a pessoas e eventos do NT. A presença de tipologia, entretanto, não significa que o NT reinterpreta o AT, nem implica que o significado do NT se torna aquele do AT. (BEALE, 2012) O NT não reinterpreta, espiritualiza, transforma ou redefine o significa de passagens do AT.
Em resumo, os autores do NT podem aplicar as passagens do AT de várias formas e conceitos como solidariedade corporativa, tipologia, esperança messiânica e teologia prévia devem ser levados em consideração. Contudo, os autores do NT não citam o AT fora de contexto ou de maneiras inconsistentes com o significado original. Sobre a visão do significado único de Kaiser, Moo diz:
“Uma vez que se leva em consideração de forma suficiente o contexto teológico, e o contexto teológico do Novo Testamento é similarmente entendido em toda a sua riqueza, discrepâncias aparentes entre o significado de um texto do Antigo Testamento e o significado dado, aquele texto no Novo Testamento desaparece.” (2016, p.199)
Comentando sobre um benefício em potencial desta perspectiva, Kenneth Berding declara, “É a abordagem que mais satisfaz diretamente a inclinação de muitos leitores de que deve haver uma conexão direta entre uma profecia e a sua realização.” (BERDING, 2009, p. 241)
3.2 Abordagem Sensus Plenior
Para a abordagem do sensus plenior os autores do NT foram capazes de olhar para o AT e perceberem outras camadas de significado que não necessariamente o autor original acessou. Isso seria possível devido aos autores do NT estarem em um momento mais avançada da história da revelação. Assim, nesta posição existem dois níveis de significado. O primeiro é o significado pretendido pelo autor humano, aquilo que é chamado de intenção autoral. Esse significado é o que está posto. O segundo significado é aquele mais profundo, o significado divino. Este estava escondido e é mais completo do que o primeiro. O termo sensus plenior vem do latim e quer dizer ‘sentido mais completo’.
Peter Enns defende essa abordagem e afirma que devido a autoria final de Deus “há um sentido mais completo para o AT do que o que Deus revelado aos autores do AT, mas que o próprio Deus pretendia ser manifestado em Cristo”. (Enns, 2008 p.205) Para ele (2008) a intenção autoral não esgota o significado de uma passagem do AT. Embora, o autor tenha sido inspirado por Deus e o texto seja útil para as questões de seus dias, há um sensus plenior conhecido por Deus, que, somente, será compreendido até que seja revelado na vinda de Cristo.
Para Enns o uso do AT no NT não deveria ser compreendido como simplesmente uma aplicação. Feito o próprio autor afirma:
A distinção entre aplicação e significado é útil e importante em certas áreas, com certeza,, mas não acho que seja de utilidade geral quando o tópico se volta para o uso do AT no NT. Não acho que Paulo em Gálatas 3 ou Mateus em Mateus 2 estivessem dizendo: “Aqui está uma maneira possível de aplicar o AT a Jesus”. Em vez disso, na minha opinião, eles estavam abrindo a cortina e nos permitindo ver um grande mistério, a saber, as profundezas em que Jesus de Nazaré é o clímax da história de Israel. A distinção aplicação/significado pode ajudar a proteger os autores do NT contra a acusação de empregar hermenêutica aleatória, subjetiva ou ilegítima, mas o que se perde no processo é precioso demais. Em vez disso, parece-me que os autores do NT estão submetendo o AT a autoridade do Cristo crucificado e ressuscitado, aquele em quem o povo de Deus e, portanto, a Escritura que conta sua história, agora encontra sua coerência. (2008, p. 205)
Raymond Brown (1928-1988) foi o teólogo católico que escreveu a importante obra para explicar o sensus plenior intitulada The Sensus Plenior of Sacred Scripture, nela o Brown definiu o conceito da seguinte maneira:
O sensus plenior é aquele significado adicional e mais profundo, pretendido por Deus, mas não claramente pretendido pelo autor humano, que se vê existir nas palavras de um texto bíblico (ou grupo de textos, ou mesmo um livro inteiro) quando são estudados à luz da revelação ou desenvolvimento adicional na compreensão da revelação. (1955, p.92)
Fica claro, na definição de Brown, que o sentido mais completo é um significado adicional compreendido como mais profundo: isso é evidenciado pela palavra plenior. É um significado pretendido por Deus, fato que leva Brown a chamá-lo de sentido da Escritura. Para o autor “uma vez que Deus é o principal autor da Bíblia, tudo o que Ele pretendia expressar por suas palavras é verdadeiramente um sentido bíblico, quer o autor humano o tenha pretendido ou não” (1955, p.92). Esses significados escondidos e mais completos são supostamente descobertos “à luz de revelação adicional” ou de “desenvolvimento no entendimento da revelação.” Para essa visão é a revelação do NT que permite ao estudante que desenterre ou descubra os significados escondidos e mais profundos que já existem nas passagens do AT. Fato que os leva a empregar uma primazia hermenêutica ao NT em detrimento do AT.
Ainda sobre a definição de Brown, é importante que se diga que para o autor o sensus plenior pressupõe o sentido literal da passagem e é um desenvolvimento desse sentido literal. Assim, a maneira pela qual se busca a certeza de que algum significado mais profundo é realmente um sensus plenior legítimo, é mostrando sua conexão com o sentido literal, do qual o sensus plenior é uma evolução.
As palavras finais ‘desenvolvimento adicional no entendimento da revelação” são postas de modo a inserir tanto o AT quanto o NT dentro do escopo do sensus plenior. Para o Brown a revelação posterior do AT poderia trazer o sensus plenior sobre eventos que a precederam. No entanto, o autor afirma que a grande chave para o sensus plenior do AT é Cristo.
Para J.I Packer, que é considerado um expoente evangélico dessa visão, o Sensus Plenior é construído sobre o alicerce da intenção autoral. De acordo com Packer “apesar de que Deus pode ter mais a dizer para nós de cada texto do que o autor humano pretendia, o significado de Deus nunca é menos que isso. O que ele quer dizer, Deus quer dizer.” (1977, p.148). É importante perceber que com esse comentário Packer tenta fechar as portas para a interpretação alegórica.
Douglas Moo (2018) coloca que o autor humano poderia compreender o sensus plenior ainda que vagamente e ressaltar a necessidade dos sentidos (humano e divino) serem relacionados. A questão da alegoria vem a ser um ponto de divergência dentre os proponentes dessa visão fato que leva os estudiosos a considerem que Packer se mantém dentro do método histórico-gramatical[5]. Nas próprias palavra de Packer:
Se, como em um sentido é invariavelmente o caso, o significado e a mensagem de Deus por meio de cada passagem, quando colocados no seu contexto bíblico total, excedem o que o escritor humano tinha em mente, esse significado ulterior é apenas uma extensão e desenvolvimento do sentido do autor, uma extração de implicações e um estabelecimento de relacionamentos entre suas palavras e outras declarações bíblicas, talvez posteriores, de um modo que o próprio escritor, pela natureza do caso, não poderia fazer. […] O ponto aqui é que o sensus plenior que o texto adquire no seu contexto bíblico mais amplo permanece uma extrapolação sobre o plano histórico-gramatical, não uma nova projeção sobre o plano da alegoria (PACKER, 1975, p. 6-7)
Packer usa o termo “extrapolação”. Esse termo significa que existe a possibilidade de se tirar uma conclusão com base em dados reduzidos. Por causa da ligação que Parker faz entre o sensus plenior e “plano histórico-gramatical”, o que está sendo inferido do significado escondido está relacionado com a passagem do AT. O significado não está baseado no “plano da alegoria”. Também importante é a menção de Packer de que Deus pode pretender mais do que o autor humano pretendia, porém, “o significado de Deus nunca é menos que isso”. Isso parece destacar a ideia de que a revelação posterior do NT está reinterpretando ou transcendendo uma revelação anterior do AT.
3.3 Significado Único, Múltiplos Contextos e Referentes
Uma terceira posição que se pretende apresentar neste trabalho é chamada de ‘Significado Único, Múltiplos Contextos E Referentes’. Esta visão concorda com a proposta de Kaiser e Stuart afirmando a natureza singular do significado pretendido pelo autor do AT e do NT quando os textos do AT são citados no NT. Apesar dessa unidade essencial de significado, no entanto, para os proponentes dessa visão as palavras do autor do AT podem assumir novas dimensões de significado e podem ser aplicadas sem que se incorra em alegoria ou outros tipos de erros a novos referentes e novas situações à medida que os propósitos de Deus se desdobram no contexto canônico mais amplo, mesmo referentes que muitas vezes não estavam nas mentes dos autores do AT quando escreveram seus textos. Darrell Bock é quem defende essa visão. Ao que parece Bock tentou procurou fazer uma simbiose entre as posições.
Muitas vezes, esse debate [uso do AT no NT] envolve a escolha entre uma leitura “exegética” do texto – na qual o autor preserva o sentido gramatical-histórico da intenção do autor original – e uma leitura teológica do texto – que percebe o eventual significado daquele texto à luz do desenvolvimento teológico canônico do assunto do texto – devemos escolher uma dessa abordagens em detrimento da outra? na verdade, um reconhecimento da natureza da dupla autoria, o progresso da revelação e o uso de padrão muitas vezes torna essa escolha desnecessária, uma vez que ambas as abordagens geralmente funcionam. além disso, reconhecer que o texto pode ser lido de duas maneiras legítimas ajuda a resolver vários problemas que inicialmente parecem mais assustadores. (BOCK, 2008, p. 115)
Para Bock o contexto original de uma passagem do AT desempenha um papel chave em estabelecer os parâmetros de como um texto é usado, porém, isso não é sempre o único fator. (2008, p.106) Parece que, para Bock, existe um significado estável encontrado no contexto do AT que é a fundação para o significado daquela passagem, contudo, passagens anteriores se tornam mais claras à medida que uma revelação posterior chega. Pode também haver “novos referentes” à medida que novos contextos e revelações são desdobradas. (2008, 114) Ele argumenta, então, que pode haver duas formas de ler a Bíblia – “histórico-exegética e teológico-canônica”. (2008 114) Portanto, deve haver uma abordagem ‘ambos/e’ e não um ‘ou um ou outro’ na questão do uso do AT no NT. A “exegética” não deve ser colocada contra a “teológica-canônica”, já que ambas podem ser harmonizadas
Para Bock algumas vezes o texto do AT olha para o futuro; contudo, mais frequentemente Deus faz promessas e a retrata naquilo que o autor chama de ‘evento espelho’. O qual acontece primeiro dentro da história contemporânea ao evento para que a promessa apresente um padrão da atividade de Deus na história e isso tudo irá apontar para o evento maior o ‘evento’ Jesus. Assim, para Bock, as promessas de Deus frequentemente trabalham através da história, criando um padrão, mais que meramente em um momento do tempo.
O que a visão de Bock vai enfatizar é que o uso do AT no NT envolve dois cenários. Primeiro, a passagem do AT pode ser estudada utilizando uma leitura canônica ao invés uma leitura meramente exegética. O ponto aqui é mostrar que as categorias de pensamento do primeiro século junto com a própria vida de Jesus ajudam os leitores a ler o texto com mais clareza do que antes. Uma vez que os padrões de atuação de Deus na história já se desenvolveram. Bock chama isso de visão dos contextos históricos. Segundo ponto, o contexto original é quem define as regras fundamentais na definição dos parâmetros de como o texto é usado. Darrell Bock não enxerga o NT usando AT de forma aleatória de uma maneira na qual única explicação possível seria a inspiração, para ele mesmo quando NT usa o AT de forma aleatória se feito um estudo cuidadoso se perceberá que os autores do NT tinham um método.
A premissa chave para a visão de Darrell Bock é que Deus trabalha de duas maneiras na sua Palavra e em evento reveladores que ajudam a elaborar sua mensagem. Em outras palavras o uso do AT pelo NT não somente sobre textos; é sobre a revelação que Deus de si faz através dos seus atos.
Darrell Bock afirma que é importante lembrar que o AT foi escrito em hebraico e aramaico. Enquanto todo o NT foi escrito em grego. Os textos do AT foram traduzidos para o grego de modo que a audiência do NT pudesse ter acesso (septuaginta). Muitos eventos descritos pelo NT tinham como a língua original o aramaico. Assim, estudar o uso do AT envolve um contexto multilíngue e multicultural.
Para Bock as citações da Bíblia tinham espaço para se engajar em alguma liberdade de tradução, pois o objetivo era trazer à tona toda a força de uma passagem, às vezes à luz de contextos maiores, incluindo considerações canônicas da escritura hebraica.
Para Bock a questão da dupla autoria levanta problemas específicos. Apesar de Deus ter inspirado os autores que escreveram os livros, eles não entenderam tudo que tinha escrito 1 Pe 1.10-12 indica que os autores humanos não entenderam o tempo ou as circunstâncias de tudo o que eles previram. Assim, Bock admite que Deus poderia tem múltiplos referentes e períodos específicos para aquilo ocorrer, mesmo que o profeta não soubesse (2009, p.112). Contudo, Bock ressalta a necessidade de se estabelecer uma relação entre o que está posto com esse algo a mais que Deus disse.
Para lida com a questão do significado Bock levantar dois termos chaves: A relação de referência da linguagem e o progresso da revelação. Para o autor, a presença de padrões tipológicos na história possibilita visar dois ou mais eventos dentro do mesmo texto. A flexibilidade dentro da linguagem permite isso também, se as descrições forem mantidas genéricas o suficiente.
Bock apresenta três elementos que constituem o significado – esses três elementos devem considerar o contexto do texto, pois este é um fator crucial. São eles: Símbolo; sentido e referente. Para explicar ele apresenta como exemplo o paracleto em João 14: Os símbolos são os sinais alfabéticos da palavra. Cada letra constitui um símbolo. O sentido é a definição mais genérica do dicionário, seu significado mais genérico. No exemplo em questão, poderia ser encorajador, consolador, confortador. Contudo, o mais importante para a interpretação específica é a coisa específica, pessoa, objeto ou referido no contexto. Em João 14, o referente é o Espírito Santo. Jesus tem uma figura específica em mente quando fala sobre o consolador.
Mas, quando um texto discute um padrão tipológico em oposição a um evento? O sentido torna-se chave no texto e os referentes se multiplicam à medida que cada contexto é abordado. Em Isaías 40.1-11 o termo ‘exílio’ pode se referir tanto a situação imediata de Israel como a salvação completa em determinado período. Esse é um simples exemplo do processo de referência na linguagem. Salvação a curto prazo seria libertação do exílio, mas na visão de longo prazo do NT o referente é a salvação em Cristo ou a vida eterna. Tal distinção reflete a tipologia bíblica e o progresso da revelação, onde o evento aumenta ou escalona em seu cumprimento posterior.
Esse tipo de padrão de cumprimento deve significar que apesar do sentido de um termo ser mantido em todos os seus cumprimentos, o referente é elevado a um novo nível de realização devido a um escalonamento. Seria semelhante ao que se ver no Uso de Jonas por Jesus.
A revelação progressiva introduz uma ideia que é também uma característica especial do conceito de dupla autoria, a saber, que Deus revela progressivamente seu plano ao longo da história. Isso significa que a força de uma passagem anterior no plano de Deus se torna mais clara e mais desenvolvida à medida que mais do plano é revelado em eventos e textos posteriores. O aumento dessa clareza envolve a identificação de um novo referente para o qual o referente inicial tipologicamente apontava.
Isso guia naturalmente para as duas formas de ler a Bíblia: exegética-histórica e teológica-canônica. Bock ilustra isso em Atos 4.25-27, a oração da igreja apela para o Salmo 2.1-2, ali o que se tem é um exemplo da fúria e conspiração das nações contra Israel. Cada judeu lendo esse salmo diria pelo contexto que os inimigos seriam as nações e os gentios. Contudo, quando a igreja ora os que se opõem ao Messias são aparentemente os judeus que havia rejeitado Jesus junto com os gentios como por exemplo Pilatos. Para Bock essa interpretação simplesmente emergiu quando o salmo foi lido pelos primeiros cristãos em um novo contexto trazido pelo progresso de eventos divinamente orquestrados. A ideia central do salmo era que muitas pessoas se oporiam ao Deus e seu Messias. Assim, todo aquele que se opor a Deus e seu Messias, quer seja judeu ou gentio pode estar relacionado como o inimigo. Assim, o sentido da passagem permanece estático, porém os referentes mudam.
Um outro exemplo da maneira completar de Darrell Bock na qual ele se utiliza tanto da leitura exegética-histórica como da leitura canônica-teológica é visto na interpretação que ele oferece do texto de Gênesis 3.15. Ele argumenta que em muitos ciclos cristão o texto é conhecido como protoevangelho tal reconhecimento é uma clara referência a uma leitura teológica-canônica na qual Jesus é a semente e Satanás é a serpente. Considerando apenas o contexto histórico-exegético não se poderia chegar a essa conclusão, pois Moisés não sabia o nome de Jesus. Do ponto de vista mais exegético o texto de Gn 3.15 vai mostrar como depois do pecado a natureza se tornou mais hostil a humanidade.
Bock segue seu argumento dizendo que não há necessidade de colocar as duas perspectivas em confronto. Jesus pode ser visto como o descendente da mulher como também a hostilidade entrando na criação por causa do pecado de Adão. Para Bock, ambas as leituras do texto são legitimas.
O estudo das abordagens cristãs no estudo do uso do AT pelo NT buscou esclarecer os principais prismas com os quais se tem observado esta questão interpretativa complexa. A razão para a exposição das visões sobre o debate atual dentro da intertextualidade entre os testamentos foi necessária, pois essa afeta outras áreas e doutrinas basilares da fé cristã, e por isso precisam receber atenção devida. Como Walter Kaiser notou, “Todo esse debate não foi uma tempestade pequena em um bule de chá (2009, p.45).” A complexidade do tema e o vasto número de soluções diferentes ao problema têm ocasionado certa angústia e confusão. A tarefa é intimidadora e não há consenso acerca da abordagem apropriada
O exame de cada uma das escolas revelou que não há uma solução metodológica que lide com todos os problemas envolvidos na questão. Há por parte deste autor uma inclinação na abordagem do Significado Único – Múltipla Aplicação pela sua objetividade ao lidar com o significado do texto, fechando margem para interpretações alegóricas ou não contextuais que são capazes de solapar o ensino bíblico. Embora, este autor tenha preferência em considerar que Significado Único aplicados a múltiplos referentes pode ser a regra geral na interpretação, não descarta a possibilidade da abordagem referentiae plenior ser utilizada em algumas passagens. Reconhece-se que estudos adicionais precisam ser feitos, aplicando as metodologias aos textos para deixar que a Escritura molde o pensamento e não o contrário.
______________________________
BIBLIOGRAFIA
ALBUQUERQUE, T., CHOU, A., BOCK, D. L., GEISLER, N. L., PIRICILIP, R. E., RUNGE, S. E., & VERAS, V. Hermenêuticas: Fundamentos, Linguística e Testamentos. Eusébio – CE: Peregrino; 2018.
ALBUQUERQUE, Tiago. (Org.) Está [Re]Escrito: Uma Introdução a Intertextualidade Bíblica. Fortaleza – CE : Biblica Publicações, 2022.
ARNDT, William et al., A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature. Chicago: University of Chicago Press, 2000.
BAKER, David L. ‘Typology and the Christian Use of the Old Testament’ in BEALE, Gregory K. (org). The Right Doctrine from the Wrong Text? essays on the use of the Old Testament in the New. Michigan : Baker Academic. 1994. pp.313-30.
BEALE, G. K., CARSON, D. A., KOSTENBERG, A. J., BLOMBERG, C. L., & SEIFRID, M. A. Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova; 2014.
BEALE, G. K. Handbook on the New Testament: exegesis and Interpretatison (Grand Rapids: Baker, 2012),
BERDING, LUNDE. Three views on the NT use of the OT. Editora : Zondervan Academic; Illustrated, 2008.
CAREY, William Taylor. Dicionário do Novo Testamento Grego Rio de Janeiro, RJ: JUERP, 2011.
CARSON, D.A (Ed.) The enduring authority of the Christian Scriputures. Grand Rapids : Eerdmans Publishing Company, 2016.
CHOU, Abner. A hermenêutica dos escritores bíblicos. São Paulo – SP Editora: Impacto, 2020.
GRISAN Michael A., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, org. Willem A. VanGemeren São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2011.
KÖSTENBERG, A. J. Convite a interpretação bíblica: a tríade hermenêutica (1ª ed.). São Paulo : Vida Nova; 2015.
LEE, Jae Hyun. Paul’s gospel in romans: a discourse analysis of rom 1:16-8:39. Boston: Brill, 2010.
LOUW-NIDA, Greek-English Lexicon of the New Testament Based on Semantic Domains. Amer Bible Society; 2nd ed. Edição, 1988.
MOO, Douglas and Naselli. The Problem of the New Testament’s Use of the Old Testament. In: CARSON, D.A (org.) The Enduring Authority of the Christian Scriptures. Editora: William B. Eerdmans Publishing Company, 2016.
PINTO Carlos Osvaldo Cardoso, Foco & Desenvolvimento no Novo Testamento, org. Juan Carlos Martinez, 2a Edição revisada e atualizada São Paulo: Hagnos, 2014.
POTER, Stanley. The messiah in the Old Testament. Editora: William B. Eerdmans Publishing Company. 2007.
Richard B. Hays. Echoes of Scripture in the Letters of Paul. Editora: Yale University Press. 1993.
SILVA, Valney V. e ANDRADE, Diego P. Uma proposta dispensacionalista do uso do Antigo no Novo Testamento. Colloquium, Crato-CE, Vol. 6, número 2, p.160-177, Dezembro 2021.
VLACH, Michael. The Old in the New: Understanding How the New Testament Authors Quoted the Old Testamen. Editora : Kress Biblical Resources, 2021.
Walter Kaiser – The messiah in the Old Testament. Editora : Zondervan Academic; Revised ed. 1995.
_______________
[1] Neusner chama essa forma de midrash “parafrase”: “O exegeta parafraseava as Escrituras, impondo novos significados pelas escolhas de palavras ou mesmo adicionando frases ou sentenças adicionais e assim revisando o significado do texto recebido” (Jacob Neusner, What Is Midrash? [Guides to Biblical Scholarship: NTSeries; Philalelphia: Fortress, 1987], 7). O significado do texto é assim obscurecido porque a fronteira entre texto e comentário é extinta.
[2] Seu histórico de vida e seu preparo acadêmico lhe conferem a qualificação necessária para enfrentar tão grande empreitada. Kaiser obteve seu mestrado e doutorado na Brandeis University, na área de Estudos Mediterrâneos. Ele mesmo nos informa que foi aluno de Samuel J. Schultz e R. Laird Harris. Por mais de vinte anos, trabalhou como professor de Antigo Testamento no Trinity Evangelical Divinity School. Foi também presidente do Gordon-Conwell Theological Seminary.
[3] Ele é Diretor Executivo de Engajamento Cultural no The Hendricks Center e Professor e Pesquisador Sênior de estudos do Novo Testamento no Dallas Theological Seminary (DTS) em Dallas, Texas , Estados Unidos. Bock recebeu seu PhD da Universidade de Aberdeen , na Escócia.
[4] PhD, pela Harvard University. Ensinou Antigo Testamento no Westminster Theological Seminary, na Filadélfia, por quatorze anos. Ele é um colaborador frequente de periódicos e enciclopédias, e é autor de vários livros, incluindo Exodus in the NIV Application Commentary series pela Zondervan e Inspiration and Incarnation: Evangelicals and the Problem of the Old Testament pela Baker.
[5] veja, Valney Veras e Diego Pereira de Andrade. Uma Proposta Dispensacionalista Do Uso Do Antigo No Novo Testamento. 2021, p. 160 e ABDALLA NETO, Tiago. O uso do TANAKH no discurso parenético-escatológico de Hebreus: um estudo de caso das alusões e citações de Deuteronômio e Ageu em Hebreus 12: 14-29. 183f. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Seminário Bíblico Palavra da Vida, Atibaia. 2012. p. 25.
Deixe uma resposta
Want to join the discussion?Feel free to contribute!