Salmo 32: A Misericórdia que nos assiste
2) Deus nos instrui (Continuação)
b) Demonstramos ter assimilado a instrução do Senhor no apego à Palavra
O discernimento se revela no apego incondicional à Palavra: “O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria; revelam prudência (sekel) todos os que o praticam. O seu louvor permanece para sempre” (Sl 111.10).
“Temer a Deus não é o fim da sabedoria, mas o começo. Uma pessoa que teme a Deus pode se abrir para as alturas vastas e vertiginosas do conhecimento. Aqueles que ‘praticam’ esse temor de Deus podem ter um ‘bom entendimento’ de tudo”, interpreta Veith.[1]
Em outro contexto Calvino faz uma aplicação oportuna:
Visto que os olhos são, por assim dizer, os guias e condutores do homem nesta vida, e por sua influência os demais sentidos se movem de um lado para o outro, portanto dizer que os homens têm o temor de Deus diante de seus olhos significa que ele regula suas vidas e, exibindo-se-lhes de todos os lados para onde se volvam, serve de freio a restringir seus apetites e paixões.[2]
Quem quer que deseje crescer na fé deve também ser diligente em progredir no temor do Senhor.[3]
c) Na instrução de Deus temos o sucesso naquilo que realizamos
O caminho do “sucesso” passa pela obediência à instrução divina.
“Numa era de pragmatismo no mundo secular, onde os fins justificam os meios, existe a tentação de prostituir o caráter cristão em favor do sucesso. E mais, numa cultura que aclama cada vez mais o sucesso a qualquer custo e renega as virtudes como alvos valiosos, os líderes podem perseguir, sem perceber, os holofotes do sucesso e perder a alegria de servir a Cristo”.[4]
1) Foi esta a mensagem de Deus a Josué:
Tão-somente sê forte e mui corajoso para teres o cuidado de fazer segundo toda a lei que meu servo Moisés te ordenou; dela não te desvies, nem para a direita nem para a esquerda, para que sejas bem-sucedido (śâkal) por onde quer que andares. Não cesses de falar deste Livro da Lei; antes, medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar (tsaleah) o teu caminho e serás bem-sucedido (śâkal). (Js 1.7-8).
No Salmo 1 lemos que o homem que anda no caminho do Senhor, “É como árvore plantada junto a corrente de águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto, e cuja folhagem não murcha; e tudo quanto ele faz será bem-sucedido (tsaleah)” (Sl 1.3).
A prosperidade e o sucesso têm os seus encantos naturais além daqueles que podem ser forjados pela nossa prodigiosa imaginação. E com todos estes ingredientes, há, certamente ‒ não sejamos ingênuos ‒, as tentações próprias reforçadas pela nossa maneira de visualizar o mundo.
No entanto, a Palavra nos mostra que o ser bem-sucedido está relacionado ao proceder conforme os preceitos de Deus. Jamais seremos frustrados naquele que não tem planos frustrados (Jó 42.2). Não há genuíno sucesso fora da Palavra de Deus, de nossa obediência a Deus (Gn 39.2,3,23).
O segredo do sucesso está no alimento de nossa alma na Palavra; devemos, portanto, permanecer “plantado junto a corrente de águas”. Deus pela graça nos preserva e conduz a bom termo o que Ele mesmo colocou em nosso coração a levar adiante. “Portanto, é tão somente pela bênção divina que alguém pode permanecer numa condição de prosperidade”, resume Calvino.[5]
Lembremo-nos sempre de que o “sucesso” mencionado pelo salmista está associado mais especificamente à sua vida espiritual e, também, o que ele faz de acordo com o conselho da Lei do Senhor.
A força e a coragem de Josué se revelariam, não simplesmente em atos de bravura, estratégias e comando, mas, no apego irrestrito à Palavra. Ele necessitaria de muita coragem, como de fato necessitou, para não ceder às pressões do povo que, em muitas ocasiões, rumava em direção ao paganismo. Diante do povo, o seu testemunho final foi de uma profunda coragem e força em perseverar no serviço do Senhor (Js 24.14-15).[6]
Devemos ter diante de nós que o salmo assume uma conotação escatológica, visto que o verdadeiro sucesso só será plenamente percebido quando estivermos para sempre com o Senhor. (Vejam-se: Sl 26,37, 73, 112).
2) Davi inspirado por Deus apresenta o modelo de um bom rei como aquele que com sabedoria atenta para a Palavra de Deus:
O nosso caminho nunca poderá ser mais completo ou perfeito do que o de Deus. Isso nos parece óbvio. Muito claro. Até que tenhamos que fazer as nossas escolhas que envolvem aspectos de nossa vida que consideramos importantes, tais como prazer, bens, família, sucesso, promoção, conforto, etc. Nessas situações não é difícil nos considerarmos mais sábios e práticos do que Deus. Essa é uma sedução comum e, por vezes, quase imperceptível. Nesses casos, a instrução de Deus é ocultada ou desconsiderada.
Como somos limitados, falhos, inclinados ao mal, devemos suplicar a Deus que nos dê discernimento quanto ao caminho que devemos seguir. Esta era a súplica do salmista: “Faze-me ouvir, pela manhã, da tua graça, pois em ti confio; mostra-me o caminho por onde devo andar (yalak), porque a ti elevo a minha alma” (Sl 143.8).
O caminho para sermos íntegros ‒ inteiros e não fragmentados ‒, é buscar a instrução na Palavra perfeita do Senhor.
Devemos buscar o caminho da perfeição. Davi relata o seu sincero projeto de reinado: obediência a Deus.
Em outras palavras; seguir com discernimento e integridade o perfeito caminho do Senhor: “Atentarei sabiamente (sakal) ao caminho da perfeição (tamiym). Oh! Quando virás ter comigo? Portas a dentro, em minha casa, terei coração sincero (~To) (tom)” (Sl 101.2).
A vida cristã envolve necessária e essencialmente integridade. Integridade significa busca da verdade, compreensão e vida. Nenhum de nós é absolutamente íntegro, contudo, é impossível ser cristão sem esta busca de todo coração.[7]
Contudo, cabe aqui uma observação. Podemos ser íntegros para com aquilo que não tem integridade. Em outras palavras, podemos ser totalmente sinceros em relação ao erro por não percebermos o nosso equívoco. Ainda que seja altamente recomendável a nossa integridade, quando ela está depositada em algo de consistência frágil, movediça e enganosa, traz grande frustração. Pense no ardor do jovem Saulo em perseguir a Igreja de Deus pensando justamente estar prestando um serviço que glorificasse a este mesmo Deus. Quanta dor e sofrimento ele causou a inúmeros cristãos sinceros e a ele mesmo quando, por graça, descobriu o seu equívoco e, convertido ao Senhor, passa a pregar com fidelidade e inteireza de coração a Palavra, ensinando ser Jesus o Cristo e Senhor (At 9; 22; 26; 1Co 15.9).
Deste modo, o mesmo Deus que exige de nós integridade, revela-se de forma coerente e verdadeira conforme a sua natureza, concedendo-nos a Sua Palavra para que a conhecendo, conheçamos o seu Autor.
3) Davi quando dá instruções a seu filho Salomão, que o substituiria no trono, mostra-lhe que o êxito de seu reinado dependeria de sua fidelidade aos ensinamentos da Lei de Deus:
Guarda os preceitos do SENHOR, teu Deus, para andares nos seus caminhos, para guardares os seus estatutos, e os seus mandamentos, e os seus juízos, e os seus testemunhos, como está escrito na Lei de Moisés, para que prosperes (śâkal) em tudo quanto fizeres e por onde quer que fores. (1Rs 2.3).
Por trás de nossa desobediência, está a desconfiança da veracidade da Palavra de Deus.
Em nossa suspeita, alimentada por nossos desejos, mesmo diante da clareza da Palavra e das situações cotidianos, nos perguntamos:
Isso é de fato assim?
Ainda hoje devemos considerar tais promessas?
O mundo mudou tanto, falamos para nós mesmos, hoje as coisas são diferentes, concluímos.
Na realidade, a configuração da história pode assumir aspectos diferentes, porém, Deus continua sendo Deus; o Deus da Aliança, o Deus fiel. A sua Palavra permanece como Palavra autoritativa de Deus para todas as épocas e circunstâncias. É preciso que recuperemos, por graça, a nossa confiança em Deus e em suas promessas. Somente assim seremos de fato bem-sucedidos.
4) Davi ora neste sentido por Salomão: “Que o SENHOR te conceda prudência[8] e entendimento (bîynâh), para que, quando regeres sobre Israel, guardes (shamar) (= observar)[9] a lei do SENHOR, teu Deus” (1Cr 22.12). Guardar a Lei é um ato de grande discernimento espiritual.
5) Posteriormente quando Salomão faz aliança com Hirão, rei de Tiro, este reconhece a prudência de Salomão, bendizendo a Deus por isso: “Bendito seja o SENHOR, Deus de Israel, que fez os céus e a terra; que deu ao rei Davi um filho sábio, dotado de discrição (= prudência)[10] e entendimento (bîynâh), que edifique casa ao SENHOR e para o seu próprio reino” (2Cr 2.12).
d) Aspectos Gerais
1) Quando seguimos a instrução de Deus nos tornamos pacientes e mais dispostos a perdoar: “A discrição[11] do homem o torna longânimo, e sua glória é perdoar as injúrias” (Pv 19.11).
2) A esposa prudente é uma dádiva divina: “A casa e os bens vêm como herança dos pais; mas do SENHOR, a esposa prudente (śâkal)” (Pv 19.14). Algumas coisas podemos herdar de nossos antepassados, porém o cônjuge sábio é proveniente de Deus, por isso devemos orar neste sentido e pedir discernimento ao Senhor.
3) Precisamos, então, fazer como os líderes de Israel, que se reuniram diante de Esdras para serem instruídos na Palavra: “…. ajuntaram-se a Esdras, o escriba, os cabeças das famílias de todo o povo, os sacerdotes e os levitas, e isto para atentarem (śâkal) nas palavras da Lei” (Ne 8.13).
Necessitamos, portanto, meditar na Palavra buscando em Deus a sua compreensão para saber a aplicá-la com sabedoria e discernimento.
4) Tiago nos orienta quanto à sabedoria. A sua fonte está em Deus: “Se, porém, algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e nada lhes impropera; e ser-lhe-á concedida” (Tg 1.5).
5) De passagem podemos observar que a instrução deve ser ministrada de forma que as pessoas entendam; com sabedoria e simplicidade. Quando Esdras e os levitas leram o livro da Lei diante do povo,[12] registra Neemias: “Leram no livro, na Lei de Deus, claramente, dando explicações,[13] de maneira que entendessem (bîyn)[14] o que se lia” (Ne 8.8).
6) A verdadeira sabedoria está em atentar para a instrução de Deus: “Compreendo (śâkal) mais do que todos os meus mestres, porque medito nos teus testemunhos” (Sl 119.99).
Notemos, então, que é Deus mesmo quem nos capacita a usar de nossa inteligência. Esta “inteligência” está associada à conformação de nosso pensar e agir à Palavra de Deus.
[1]Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 135. Sobre o temor o Senhor, veja-se: Hermisten M.P. Costa, Vivendo com integridade, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2016.
[2]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 36.1), p. 122-123.
[3]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 25.14), p. 557.
[4]Alex D. Montoya, A Liderança: In: John MacArthur, Jr. et al. Redescobrindo o Ministério Pastoral, Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 1998, p. 321.
[5] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1 (Sl 1.3), p. 54. “Há nas palavras um contraste implícito entre o vigor de uma árvore plantada num sítio bem regado e a aparência decaída de uma que, embora viceje prazenteiramente por algum tempo, no entanto logo murcha em decorrência da aridez do solo em que se acha plantada” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1 (Sl 1.3), p. 54). “…. Os filhos de Deus vicejam constantemente, e são sempre regados com as secretas influências da graça divina, de modo que tudo quanto lhes suceda é proveitoso para sua salvação…. ao passo que, embora os ímpios aparentem precoce fecundidade, contudo nada produzem que conduza à perfeição” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1 (Sl 1.3), p. 54-55).
[6]“11Passando vós o Jordão e vindo a Jericó, os habitantes de Jericó pelejaram contra vós outros e também os amorreus, os ferezeus, os cananeus, os heteus, os girgaseus, os heveus e os jebuseus; porém os entreguei nas vossas mãos. 12 Enviei vespões adiante de vós, que os expulsaram da vossa presença, bem como os dois reis dos amorreus, e isso não com a tua espada, nem com o teu arco. 13 Dei-vos a terra em que não trabalhastes e cidades que não edificastes, e habitais nelas; comeis das vinhas e dos olivais que não plantastes. 14 Agora, pois, temei ao SENHOR e servi-o com integridade e com fidelidade; deitai fora os deuses aos quais serviram vossos pais dalém do Eufrates e no Egito e servi ao SENHOR. 15 Porém, se vos parece mal servir ao SENHOR, escolhei, hoje, a quem sirvais: se aos deuses a quem serviram vossos pais que estavam dalém do Eufrates ou aos deuses dos amorreus em cuja terra habitais. Eu e a minha casa serviremos ao SENHOR” (Js 24.11-15).
[7] “Para se viver com significado, é necessário descobrir a verdade, descobrir a realidade; uma vez descoberta, temos de viver em fidelidade para com a verdade. A integridade e a busca da verdade andam de mãos dadas” (Charles Colson; Harold Fickett, Uma boa vida, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 174).
[8] Aqui é empregado o substantivo sekel.
[9] 1Sm 1.12; Is 40.20.
[10] Aqui é empregado o substantivo sekel.
[11] Aqui é empregado o substantivo sekel.
[12]Não sabemos ao certo a metodologia utilizada: se, por exemplo, cada um dos levitas explicava porções sucessivas das Escrituras a todo o povo ou se todos explicaram concomitantemente a pequenos grupos.
[13] Aqui é empregado o substantivo sekel (leke&).
[14] É muito sugestivo o número de vezes que aparece (bîyn) no capítulo 8 de Neemias, demonstrando que aqueles que eram capazes de entender (Ne 8.2,3) de fato entenderam com discernimento a Palavra lida e explicada: Ne 8.2,3,7,8,9,12.
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